A primeira transmutação ocorreu muito antes de sua constituição como oficina artística e atingiu o próprio Francisco Brenand, seu criador, que saiu do Brasil aos 21 anos para estudar pintura na Europa acreditando que a cerâmica fosse uma arte menor. Bastou uma semana em Paris para aquele desdém se transformar em desejo de realização. Convidado pelo artista plástico Cícero Dias a visitar uma exposição de Picasso, ficou surpreso ao constatar que em vez de quadros, o mestre da pintura estava expondo uma coleção de aproximadamente 300 cerâmicas. Nesse dia, Brennand jurou que quando voltasse ao Brasil se dedicaria com seriedade àquela forma de arte que ele havia desprezado.
A capela cristã, por exemplo, convive com figuras da mitologia greco-romana, lagartos, basiliscos, monstros e um Templo do Sacrifício que remete ao massacre das civilizações pré-colombianas. Para completar, em todo o complexo está presente a marca da oficina que traz a imagem do arco e da flecha de Oxóssi, uma das divindades africanas.
O que parece imprimir unidade ao conjunto é a ideia de reprodução, expressa na maioria das vezes por meio de formas sexualizadas e vista por Brennand como o veículo para obtenção da imortalidade e da eternidade: "As coisas sobrevivem porque se reproduzem", diz. Nesse conceito, se fundamentam todas as obras e todos os temas que as permeiam.

O ovo como matriz
A imagem central é a do ovo, considerado pelo artista como o ponto de partida de seu trabalho e de seu pensamento e explorado incansavelmente em dezenas de peças. Ora aparece inteiro, ora em rebentação. Algumas vezes dá contorno à escultura, em outras aparece como detalhe; mas todos parecem responder a uma matriz, localizada na praça das esculturas.
Ali, dentro de um mini templo de cúpula azul, encontra-se um ovo suspenso que concentra todos esses significados. Para protegê-lo, foi erguida uma muralha repleta de sentinelas. São os Pássaros Roca - figuras criadas por Brennand e batizadas com esse nome em alusão à ave mítica da história de Simbad, o Marujo, incluída no Livro das Mil e Uma Noites.

Além das esculturas e da parte arquitetônica, a Oficina Brennand abriga centenas de pinturas e desenhos do artista. Ele não confirma, mas calcula-se que existam ali cerca de duas mil obras. O número pode parecer exagerado, mas torna-se mais realista ao constatarmos que a área total da oficina chega a 15 mil m² e que nesse espaço funcionam uma galeria (Academia), um espaço para eventos (Estádio), dois templos, um auditório, um café, uma loja, uma capela restaurada por Paulo Mendes da Rocha e jardins projetados por Burle Marx que incluem fontes e espelhos d'água .
A herança familiar
A atual Oficina Brennand foi erguida em 1971 a partir da restauração dos galpões abandonados da Cerâmica São João, fundada por seu pai em 1917. Assim como o filho, Ricardo Brennand não tinha motivação comercial. Era proprietário de usinas de açúcar e queria a fábrica de telhas e tijolos somente por paixão, pois colecionava porcelana e obras de arte.
Com esse histórico, Francisco teve campo fértil para desenvolver seu talento. Quando criança, brincava com os irmãos na olaria e já percebia ali um clima de mistério, olhando para os fornos com se fossem catacumbas. Também nesse lugar, conviveu com o artista plástico Abelardo da Hora, que trabalhou na fábrica, e aprendeu com ele a fazer esculturas.
Em pouco tempo, os dois tornaram-se amigos e Francisco gazeava aula para vê-lo pintar. Por causa dessa convivência, tornou-se amigo de outros artistas mais velhos, como Mário Nunes, Baltazar da Câmara, Murillo La Greca, todos fundadores da Escola de Belas Artes do Recife, e pintava com eles nas tardes de domingo depois de almoçarem todos juntos na casa da família Brennand.
Em busca do eixo do mundo
Com mais de 90 anos*, Francisco já não faz mais esculturas. Como nos primeiros tempos, dedica-se apenas a pintar e a escrever. Em 2016, lançou o Diário de Francisco Brennand, organizado em quatro volumes pela sobrinha neta Mariana, que ficou entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti 2017 na categoria Biografias.
Mesmo com a redução da atividade artística, Brennand segue mudando constantemente a sua oficina e afirma que continua a se sentir influenciável e receptivo, aberto a transmutações. Agora mais do que nunca.
Embora tenha morado dez anos na Europa e feito mais de 90 exposições pelo mundo afora, elegeu a Várzea como o centro do mundo. É aí, no seu 'bosque sagrado' que ele pretende continuar vivendo e produzindo como sempre, "no fio da navalha, na corda bamba, tentando coincidir com o eixo do mundo" porque, segundo acredita, "é aí que o artista encontra a verdade".

* Brennad faleceu aos 92 anos, em dezembro de 2019.
Oficina Brennand - Várzea - Recife - Pernambuco - Brasil
Texto: Sylvia Leite
Referências:
Documentário Francisco Brennand, de Maria Brennand Fortes.
Diário de Francisco Brennand, organizado por Maria Brennand Fortes.
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Amei. Não tive oportunidade de conhecer ainda. Agora com seu relato aguçou a minha curiosidade
ResponderExcluirQue bom! Adoro quando as pessoas sentem vontade de conhecer esses 'lugares de memória'. Mas você esqueceu de assinar o comentário hehe
ExcluirJá fui e é um dos lugares mais mágicos que já visitei.
ExcluirNada se compara a esse templo de arte cerâmica e divindades.
Pretendo voltar para rever essa maravilha.
Lindo demais!
ResponderExcluirImpressionante, não é? Gostaria de saber quem escreveu o comentário e esqueceu de assinar heheh
ExcluirComo sempre você consegue transmitir de forma clara e consistente a história dos lugares visitados. Já estive lá anos atrás, bom relembrar desse lugar mágico.
ResponderExcluirValeu, Neilton. Fico feliz com a sua constância. Beijo
ExcluirQue história maravilhosa! Que lugar maravilhoso! Quero conhecer ...
ResponderExcluirVale a pena!
ExcluirTive a honra de não apenas conhecer esse lugar maravilhoso, como também participar da gravação do DVD acústica da banda O Rappa. Momentos eternizados no meu coração e na minha memória
ResponderExcluirQue legal!Imagino que tenha sido inesquecível! Mas você esqueceu de assinar sua postagem. Não quer fazer mais um comentário para se identificar?
ExcluirO espaço Brennand é, realmente instigante! Belo registro, Sylvinha!
ResponderExcluirObrigada, Soninha. Concordo com você. É instigante.
ExcluirMuito, muito legal! Eu não conhecia o Brennand e seu trabalho situado nesse local! Uma aventura de descobrimento, principalmente para alguém que, como eu, é um eterno estudante da Psicanálise e dos simbolismos!
ResponderExcluirValeu, Thales! É realmente um lugar muto impactante e cheio de simbolismos. Bom saber que a matéria te trouxe novas informações.
ExcluirOi prima demorei mas estou aqui e encantada com todos os detalhes desse local tão precioso. Estive em Recife algumas vezes a trabalho na minha juventude e não conheci. Curto muito a sua maneira de escrever e ainda nos dá a oportunidade de ler sobre as pessoas que você menciona. Muito bom. Sou sua admiradora nesse seu novo trabalho. Parabéns.
ResponderExcluirObrigada, querida. Fico muito feliz por ter você como leitura assídua. Beijo
ExcluirAgora fiquei com vontade de conhecer. Você me aguçou Sylvia. Beijos
ResponderExcluirAdoro quando alguém fica com vontade de viajar depois de ler uma matéria minha. Mas desta vez fiquei sem saber quem eu consegui influenciar. Você esqueceu de colocar seu nome rsrsr. Não quer se identificar? Beijos.
ExcluirConhecia o trabalho de forma mais específica pela diversidade e beleza das cerâmicas e não pelas obras de arte criadas por ele . Nunca tive oportunidade de ir na oficina e ver essa criação . Com certeza após essa postagem estará no meu roteiro !!! Bjs
ResponderExcluirVocê não sabe como fico feliz quando alguém resolve visitar algum desses lugares de memória kkkkk beijo
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