A região do Bixiga (ou Bexiga), na zona central de São Paulo, ficou conhecida pelo Brasil afora como o reduto dos italianos porque no início do século 20 recebeu milhares de imigrantes da Calábria, que encheram suas ruas de cantinas e eventos típicos, como é o caso da Festa de Nossa Senhora Achiropita, a mais importante da colônia. O que nem todo mundo sabe, especialmente os que moram em outros estados ou países, é que tanto quanto dos italianos, o Bixiga é também de pelo menos mais dois grupos: os negros e os nordestinos.
Não é preciso pesquisar muito para encontrar os sinais dessa ocupação. A Rua Treze de Maio, por exemplo, uma das mais conhecidas de São Paulo e a principal rua de comércio da região, recebeu esse nome em alusão à data de assinatura da lei que pôs vim à escravidão, a famosa Lei Áurea. Outra referência à presença negra é a escadaria do Bixiga, considerada um marco da aproximação entre os brancos - que viviam em mansões no Morro dos Ingleses, próximo à Avenida Paulista -, e os negros, que viviam na parte baixa da cidade. Anualmente, a escadaria é lavada no dia da Abolição, em um ritual semelhante aos das festas de largo da Bahia.
Não se pode esquecer, também, a Pastoral Afro, que funciona há mais de 30 anos na Igreja da Achiropita realizando atividades religiosas e culturais sincréticas, entre as quais se destacam a Festa de São Benedito - o Santo Siciliano, filho de escravos -, a Festa da Mãe Negra e os Batismos Inculturados, mais conhecidos como Batismos Afros. São cerimônias católicas que recebem esse nome por incluírem a liturgia 'inculturada' dos povos negros: cantos em ritmo de samba; danças que louvam a Deus com o corpo, roupas típicas que incluem batas, turbantes e amarrações; além da bênção com água-de-cheiro. Ao final, a criança é vestida com 'a segunda roupa' - uma bata afro - que simboliza sua introdução nas duas comunidades, a cristã e a negra.
Essa pouca visibilidade, unida à escassez de registros sobre a influência dos nordestinos no Bixiga, acaba escondendo sua presença no local, mas quem conversa com moradores e frequentadores assíduos pode ter uma surpresa. Um dos fundadores e atual diretor de Museu Memórias do Bixiga, Paulo Santiago de Augustinis , por exemplo, afirma que pelo menos 60 por cento dos comerciantes da rua Treze de Maio, entre a as ruas Santo Antônio e Brigadeiro, são nordestinos e que em toda a região eles e seus descendentes têm uma forte presença tanto no comércio como nas instituições. O próprio Paulo é nascido em Caxias, interior do Maranhão, filho de mãe nordestina e pai italiano, e chegou ao Bixiga ainda adolescente, no início da década de 1960.
Mas italianos, negros e nordestinos são apenas os principais grupos que compõem a aquarela do Bixiga. Ali chegaram também espanhóis e portugueses, tanto que uma de sua mais tradicionais padarias tem o nome do escritor lusitano Luís de Camões.
João Rubinato - esse era seu nome verdadeiro - nasceu em Valinhos, interior de São Paulo, em 1910, mas era filho de italianos e teve um motivo a mais para morar no Bixiga quando chegou a São Paulo para iniciar sua carreira de cantor: a proximidade com o centro, onde ficava a maioria das emissoras de rádio. Foi ali que o compositor conheceu sua primeira mulher Olga Krum, com quem se casou, em 1936, na Igreja da Achiropita. E foi ali também que frequentou bares, restaurantes e rodas de samba mesmo depois de já ter se mudado para utra região da cidade.
A lembrança de Adoniran está presente em cada esquina do Bexiga e, em algumas delas, esta afirmação torna-se literal pois a imagem do compositor aparece nos semáforos de pedestres, substituindo as tradicionais setas. Mas isso não é tudo. As homenagens oficiais estão na Praça Dom Orione, que abriga seu busto, e em uma rua batizada com seu nome.
A memória em cada esquina
Registros da carreira de Adoniran e de sua passagem pelo bairro estão também no Museu Memória do Bixiga, que passou cerca de dez anos fechado por problemas financeiros e reabriu em 2018 com recursos da comunidade. O museu tem mais de 1 mil e 500 itens colhidos na vizinhança por um de seus fundadores, Armando Puglise - o famoso Armandinho do Bixiga - ou doados por moradores e frequentadores da região.
Ao seu lado, um outro ponto de memória: o Museu dos Óculos Gioconda Giani, que reúne mais de 700 peças históricas – originais ou réplicas – que vão desde o primeiro modelo de óculos usados por nobres chineses entre 400 e 500 Antes de Cristo, até peças que pertenceram a artistas brasileiros de nossa época José Wilker, Elis Regina e Rita Lee**.
Entre as construções históricas do Bixiga está a Casa de Dona Yayá*** – considerada um símbolo da arquitetura eclética da região central de São Paulo –, onde funciona atualmente o Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo. Além do aspecto arquitetônico, esse casarão do final do século 19 guarda a história de sua proprietária que ganhou importância história por simbolizar a maneira como pacientes psiquiátricos eram tratados na época. Dona Yayá, por aprsesentar distúrbios mentais, ficou trancada nessa casa por 36 naos, sem poder abrir sequer uma janela.
Resta falar dos Arcos da Rua Jandaia - um muro de arrimo construído por imigrantes italianos no início do século 20 (segundo a Prefeitura), ou no fim do século 19 (segundo alguns historiadores), que ficou anos encoberto por sobrados erguidos em sua frente. Só foi descoberto, acidentalmente, em 1987, quando o prefeito Jânio Quadros mandou derrubar os sobrados para construir uma ligação entre duas grandes vias da cidade: a avenida 23 de maio e a ligação Leste-Oeste. A descoberta encantou São Paulo. Os arcos foram restaurados, iluminados e ganharam um jardim. A área que fica em frente aos arcos foi batizada como Praça dos Artesãos Calabreses em homenagem a seus construtores.
O Bixiga do movimento teatral
Além da profissionalização dos atores, o teatro é considerado o berço de importantes iniciativas na área das artes cênicas. Nele foram gestados, por exemplo, o Teatro de Arena e o Teatro dos Sete, formado por Fernanda Montenegro, Giani Ratto, Ítalo Rossi e Sérgio Britto. Foi também em seu espaço que nasceram os embriões da Companhia de Cinema Vera Cruz e da Escola de Arte Dramática (EAD), que acabou sendo incorporada pela Universidade de São Paulo- USP.
Em 1956, foi a vez do Teatro Bela Vista, criado pelo casal de atores Sérgio Cardoso e Nydia Lícia. O novo teatro ocupou o lugar do Cine Espéria que estava abandonado e foi descoberto pelos dois em um passeio durante a madrugada. O atual Teatro Sérgio Cardoso, criado em 1980, foi batizado em homenagem ao ator, morto oito anos antes, e é considerado uma continuação do Teatro Bela Vista.
Teatro Oficina
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O Cineclube Bixiga
A história do bairro (ou território) está impressa, também, na memória do Movimento Cineclubista Brasileiro por meio do Cineclube Bixiga, criado em 1981 por jovens como Antônio Gouveia, Arnaldo Vuolo, Frank Ferreira e Diogo Gomes dos Santos. A ideia era abrir espaço para o cinema nacional e profissionalizar a exibição de filmes de arte, por isso foi um dos primeiros a adotar a bitola de 35mm.
Nem uma nem outra proposta foi cem por cento concretizada, mas o Cineclube do Bixiga ganhou projeção e hoje é considerado origem e inspiração do atual circuito cultural de cinema do país. Foi de sua sala, por exemplo, que saiu o então programador Adhemar Oliveira, que foi um dos fundadores do Cineclube Estação Botafogo, no Rio de Janeiro, e hoje é proprietário da Espaço de Cinema - empresa que começou com o Espaço Unibanco, em São Paulo, e hoje reúne mais de 70 salas de cinema cultural distribuídas por cinco estados.
Os cafés, das bandas e das performances
Perto dali, na Rua Conselheiro Ramalho, rolava uma experiência mais radical: o Restaurante Cultural Madame Satã. O lugar, que virou 'point' da chamada 'geração perdida', reunia músicos e performers dos mais diversos estilos, tendo como únicas regras o espírito underground e a liberdade de expressão. Por ali passaram inúmeros músicos, atores, dançarinos, DJs e bandas como Ira, Ultraje a Rigor, Capital Inicial, Jardim das Delícias, entre outras.
O Bixiga do Século 21
Alguns elementos do passado continuam lá, mas já incorporam elementos atuais. Caso, por exemplo, das barbearias, que embora tentem reviver a tradição, com cadeiras de madeira, navalhas e toalhas quentes, utilizam cosméticos modernos e dividem espaço com lojas, estúdios de Tatoos, e até com bares e restaurantes. Um desses negócios, o Central Panelaço, é uma mistura de loja e restaurante vegano comandado por João Gordo, vocalista da banda Ratos de Porão, e sua mulher Viviana Torrico, e onde se vende de vinis a tênis antigos, de pôsters de bandas de rock a produtos veganos.
O Bixiga abriga também, seguindo a sua veia de diversidade e engajamento social, o Espaço Cultural Latino Americano (Ecla), e um dos mais famosos empreendimentos de refugiados de São Paulo, o Espaço Cultural, Bar e Restaurante Árabe Al Janiah, que além de pertencer a um palestino, promove noites temáticas com refugiados de vários países.
Assim é o Bixiga. Um território que não existe oficialmente e não corresponde integralmente ao bairro da Bela Vista, onde fica sua maior extensão. Leva o apelido do dono da chácara que antecedeu sua urbanização - um homem chamado assim pelo fato de vender bexiga de boi ou porque tinha o rosto marcado por cicatrizes da varíola, não se sabe ao certo. É um lugar simbólico, onde sempre coube e provavelmente sempre caberá gente de todas as origens, raças, religiões e posições políticas. Onde as tradições convivem em paz com os movimentos vanguardistas e revolucionários. Talvez sua melhor definição seja aquela dada por Arnando Puglise, seguramente seu maior divulgador: "O Bixiga é um estado de espírito".
* O bixiga não é um bairro, como veremos adiante.
** Breve teremos matéria sobre o Museu dos Óculos aqui no blog.
*** Breve teremos matéria sobre a Casa de Yayá aqui no blog.
**** Leia, aqui no blog, matéria sobre a Vila Itororó.
*****Leia, aqui no blog, matéria sobre o Teatro Oficina.
Bixiga - Bela Vista - São Paulo - São Paulo - Brasil - América do Sul
Jornalista - MTB: 335 DRT-SE / Linkedin / Lattes
Fotos:
(1,3,6,7,8, 9 e 13) Sylvia Leite
(2) Dornicke - Obra do próprio, CC BY-SA 4.0
(4) Divulgação Portal do Bixiga
(5) Divulgação site Casa Mestre Ananias
(10) Lukaaz - Obra do próprio, CC BY-SA 3.0
(11) Divulgação site Teatro Oficina
(12) Blog Salas de Cinema de São Paulo.
Referências:
Consultoria:
Paulo Santiago de Augustinis - diretor do Museu Memórias do Bixiga.
Sites:
Casa Mestre Ananias
Portal do Bixiga
Salas de Cinema de São Paulo
Teatro Oficina
Teatro Ruth Escobar
Teatro Sérgio Cardoso
Vai-Vai
Artigo:
Cineclubismo no Brasil: Esboço de uma História
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Parodiando Caetano... " porque és o avesso do avesso, do avesso, do avesso, com o café Piu - Piu,e a magnifica festa de N. Sra Aqueropita, misturando culturas,linguas,raças, etnías !
ResponderExcluirObrigada pelo comentário, Luiz. Volte sempre. Abraço!
ExcluirBelo registro, Sylvinha!
ResponderExcluirAssim que cheguei a São Paulo, comprei um livro sobre os bairros, sempre gostei de conhecer um pouco da história dos lugares onde morei. Mas o seu texto está mais completo que o livro, pode ter certeza. Parabéns.
Beijo
sonia pedrosa
Valeu, Soninha! Que bom que gostou! Beijo
ExcluirEu nasci neste bairro tenho muito orgulho do bexiga
ResponderExcluirÉ pra ter orgulho mesmo. Obrigada pelo comentário. Da próxima vez, por favor se identifique. Abraço!
Excluir