Juazeiro do Norte: de Padre Cícero à Literatura de Cordel

Tempo de Leitura: 6 minutos

Atualizado em 25/03/2022 por Sylvia Leite

Estátua de Padre Cícero - Foto Paulo Maia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIANo resto do país, Juazeiro do Norte, no Ceará, é conhecido como um local de peregrinação, marcado por igrejas, museus e, princialmente, pelo seu símbolo maior: a enorme estátua de Padre Cícero – um milagreiro católico que, mesmo não tendo sido canonizado pela Igreja, é considerado santo por milhares de fiéís. Para os devotos, que costumam visitar a cidade em época de romaria, esta pode parecer sua única característica, mas no rastro dessa devoção popular foi tecida uma história que, ao longo dos séculos, transformou a vila sertaneja em um importante polo acadêmico do Nordeste e um dos maiores centros de Literatura de Cordel do país.1

Parte dessa construção se deve ao próprio Padre Cícero. Antes de sua chegada, em 1872, Juazeiro se chamava Tabuleiro Grande. Era apenas um distrito do Crato e funcionava como entreposto para os que iam ao Cariri. Com o lema “Em cada casa uma oficina e em cada oficina um oratório”, ele estimulou, simultaneamente, o crescimento econômico e a religiosidade que, juntos, deram origem à efervescência cultural da cidade.  Mulher reza aos pés da estátua de Padre Cícero - Foto Paulo Maia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Juazeiro do Norte nasceu de um sonho

Tudo começou quando o jovem padre, na época com menos de 30 anos, foi convidado a rezar a Missa do Galo no povoado de Tabuleiro Grande, que não passava de um pequeno aglomerado de casas. Poucos meses depois, ele acabou se mudando para lá acompanhado de alguns familiares. Segundo os registros, a mudança teria sido determinada por um sonho em que Jesus Cristo, ao constatar o abandono em que viviam os moradores de Tabuleiro Grande, teria demonstrado decepção com a humanidade e sua disposição de fazer um último sacrifício para salvá-la, fazendo ao Padre Cícero a seguinte convocação: “E você, Padre Cícero, tome conta deles”.

Uma das primeiras iniciativas de Padre Cícero no cumprimento de sua missão foi a criação das Casas de Caridade, destinadas a cuidar da educação, da saúde e da religiosidade da população. A transformação econômica se deu por meio das oficinas que produziam principalmente sapatos, imagens sacras e velas.

Imagens de Pdre Cídero e outras oferendas - Foto Paulo Maia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

O povoado cresceu tanto, que chegou a rivalizar com a capital, Fortaleza, mas só conseguiu a emancipação em 1911, depois de um greve geral e de uma passeata que reuniu cerca de 15 mil pessoas. Ao tornar-se município, a antiga vila recebeu o nome de Joaseiro, em alusão a uma árvore abundante na região, também conhecida como Pé de Joá. Padre Cícero não apenas participou do movimento, como tornou-se seu primeiro prefeito.

“Meu Padim Pade Ciço”

A essa altura, sua fama de milagreiro já havia de espalhado pela região. Isso porque, em 1889, durante uma missa, uma hóstia que ele entregou à beata Maria de Araújo teria se transformado em sangue e o fenômeno teria se repetido ao longo dos anos seguintes. Duas comissões da Igreja estudaram o caso. A primeira comissão confirmou a inexistência de explicações científicas para o fato, o que reforçava a hipótese de milagre, mas para a segunda equipe, tudo não passou de uma farsa.Fitas de Padre Cídero e outras oferendas - Foto de Paulo Maia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Padre Cícero foi então afastado da Igreja e, embora tempos depois tenha obtido o perdão do Papa, permaneceu assim até a sua morte. Houve, inclusive, pedido de ex-comunhão e expulsão da cidade, mas nada disso abalou a fé dos devotos que, na impossibilidade de Padre Cicero realizar o batismo de  seus filhos, o convidavam para ser padrinho. Talvez venha daí o famoso apelido “meu padim Pade Ciço”.

Como não podia mais atuar na Igreja, Padre Cícero continuou seu trabalho no campo político. Foi vice-governador do Ceará e elegeu-se deputado, mas não chegou a assumir. Sua posiçãoFolhetos de Cordel - Foto de Diego Dacal - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA sempre foi conservadora. Conta-se, que logo que chegou ao local, reprimiu a prostituição e, em 1926, quando a Coluna Prestes percorria o interior do Nordeste, ele teria se aliado ao Cangaço para combater os revolucionários. Há duas versões para o fato: a primeira afirma que Padre Cicero teria tomado a iniciativa do acordo, mas segundo outra versão tudo teria sido feito por seu braço direito, o médico Floro Bartolomeu sem que ele soubesse.

Seja qual for a verdade, todos os relatos  concordam que Lampião e seu bando acabaram indo embora sem combater a Coluna Prestes.

Efervescência cultural

                      Na politica ou na religião, Padre Cícero continuou sendo cultuado pela população de Juazeiro do Norte e de outras cidades nordestinas. Essa mobilização religiosa talvez tenha sido a raiz de outras formas de engajamento que se observam hoje na cidade. Uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgada em 2009, revelou que sua população tem um altíssimo nível de envolvimento em atividades culturais. E as estatísticas não contestam a afirmação dos pesquisadores: Juazeiro tem mais de 70 grupos de cultura popular, incluindo reisados e malhação de judas; é um dos pontos de concentração de repentistas, da Literatura de Cordel e da Xilogravura no Nordeste. As escolas públicas mantêm a tradição das fanfarras, que desfilam pelas ruas nas comemorações da Independência.

Ao lado das tradições, a população de Juazeiro do Norte cultiva outras tipos de manifestação cultural, como é o caso do artesanato, concentrado no Centro Cultural Mestre Noza, das bandas de rock, axé e música eletrônica; do ballet e também do teatro, que já conta com três casas de espetáculo para uma população inferior a 300 mil habitantes.

Juazeiro sedia, ainda, mais de dez instituições de ensino superior, sendo quatro públicas, entre as quais estão a Universidade Federal do Cariri (UFC) e a Universidade Regional do Cariri (URCA) que, além das atividades educacionais e de pesquisa
inerentes a uma universidade pública, mantêm uma instituição cultural dedicada à preservação e difusão da Literatura de Foto divulgação facebook Lira Nordestina - Matéria Juazeiro do Norte - BLOG LUGARES DE MEMÓRIACordel, da Xilogravura e da Tipografia: a editora Lira Nordestina.

A Lira Nordestina

A editora nasceu em 1932, como Tipografia Silva, sobrenome de seu proprietário, o romeiro José Bonifácio da Silva, que havia chegado a Juazeiro anos antes para conhecer Padre Cícero e trabalhar como folheteiro – nome dado aos vendedores de Literatura de Cordel. Em pouco tempo, a gráfica passou a se chamar Tipografia São Francisco e foi com esse nome que ficou conhecida em todo o Nordeste, chegando a tornar-se, na década de 1950, a mais importante editora de cordel do país.

A passagem de tipografia a editora se deu quando José Bonifácio comprou os direitos de publicação  de dois conhecidos poetas de cordel: João Martins de Athayde. e  Leandro Gomes de Barros – este último, conhecido como mestre de Pombal e Foto divulgação facebook Lira Nordestina - Matéria Juazeiro do Norte - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAconsiderado o primeiro autor de Literatura de Cordel do Brasil. 

Com a queda nas vendas dos folhetos, no final de década de 1960, seguida da morte de seu idealizador, a Tipografia São Francisco entrou em decadência e acabou sendo comprada pelo governo do Ceará, que a colocou sob a administração da Universidade do Cariri. Não foi possível localizar em que momento ocorreu a troca do nome por Lira Nordestina.
Dos tempos áureos, a Lira Nordestina guarda uma relíquia – uma impressora Alauzet , de ferro fundido, fabricada em Paris e adquirida por José Bonifácio da Silva em 1950. Nela eram impressos os folhetos mais importantes da editora. A máquina já não funciona, mas serve como testemunha da história da editora.

Na universidade, a Lira Nordestina já passou por altos e baixos, mas teve sua atuação ampliada com a realização de oficinas, pesquisas e visitas guiadas. Em agosto de 2019, iniciaram-se negociações entre a URCA e a Prefeitura de Juazeiro para transformá-la em museu. 2

Notas

 

Juazeiro do Norte – Cariri – Ceará – Brasil – América do Sul

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Nivaldov
4 anos atrás

Excelente trabalho!

sonia pedrosa cury
4 anos atrás

A próxima vez que eu for ao Ceará , quero passar por Juazeiro. Todos dizem que vale a visita! Beijão, Sylvinha!
Sonia pedrosa.

Val Cantanhede
4 anos atrás

Muito interessante sua matéria, Sylvinha! A devoção dos nordestinos ao Padre Cícero persiste nas romarias em Juazeiro do Norte.Meu pai, um pernambucano que migrou para São Paulo na década de 30, não conheceu o "Padim Ciço" pessoalmente, mas o considerava um santo, só de ouvir falar dos milagres dele.
Recentemente, um amigo, antigo militante comunista, visitou Juazeiro do Norte e se converteu. Mais um milagre do nosso "Padim Ciço"?
Abraços
Val Cantanhede

gilsinho marques
4 anos atrás

Sensacional o texto! Parabéns! Viva a cultura popular!

Sidney Menezes
4 anos atrás

Silvinha, todos os anos, da pequena Pirambu onde tenho a casa de praia, saem ônibus para a visita a Juazeiro. De quando comecei a conviver e me apaixonar por Pirambu, aqui no nosso Sergipe, já se passaram mais de trinta anos, as viagens antigamente eram realizadas em caminhões Paus de Arara, imagine. Com o passar do tempo e a forte devoção ao Padre Cícero, logo após a minha casa , hoje existe a Praça em sua Homenagem e , é de lá que saem atualmente os ônibus para a peregrinação, sendo todos recebidos no retorno com muita festa e fogos de artificio.
Parabéns mais uma vez.

Unknown
3 anos atrás

Só deixo meu Cariri no último pau-de-arara.