Ini ou rede de dormir: um utensílio que se tornou símbolo de brasilidade

Tempo de Leitura: 9 minutos

Atualizado em 20/03/2022 por Sylvia Leite

Redes à venda no mercado - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIANós o conhecemos como rede de dormir mas, para seus primeiros usuários, esse leito suspenso, que eles próprios teciam, tinha o nome de ini. Era fácil de transportar e podia ser usado para outros fins, como carregar mortos até o túmulo. Seu ‘exotismo’ impressionou os colonizadores e seu carisma o levou às páginas de ficção – de simples histórias em quadrinhos, com personagens como o Zé Carioca, do americano Walt Disney, à mais apurada literatura, como o festejado Macunaíma1, do brasileiro Mário de Andrade.

Atualmente, a ini, ou rede de dormir, parece estar mais identificada com as regiões Norte e Nordeste, aonde ainda é bastante usada seja para dormir, ou para embalar crianças e bebês. A rede serve, ainda, nos tempos Exposição Vaivém no CCBB - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAatuais, como mobiliário de descanso em terraços e varandas2, mas essa utilização pode ser vista também em outras partes do país, predominantemente em fazendas ou casas de praia.

De onde vem a ini, ou rede de dormir

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a rede era feita com fios trançados e assemelhava-se a redes de pescar, por isso Pero Vaz de Caminha a batizou com esse nome, sem sequer perguntar aos nativos como eles chamavam aquele utensílio. O nome pegou e, hoje, mesmo entre os que dormem ou descansam em redes, poucos sabem que ini era seu nome original.Bebê dorme na rede - Foto David Mark por Pixabay -  BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A rede também existia, e ainda existe, em outras partes da América, especialmente no Sul e no Caribe, onde é chamada de hamaca – palavra espanhola que tem origem no idioma indígena taíno e, da mesma forma que a palavra portuguesa, também denomina as redes de pescar.

Sua origem exata, no entanto, parece não ser conhecida. Segundo o antropólogo e historiador Luís da Câmara Cascudo, pesquisas antropológicas realizadas pelo mundo afora indicam que a rede de dormir era um utensílio desconhecido na África e na Ásia antes de ser introduzido por Portugueses e Espanhóis. Também não foi encontrada na Oceania. O mais provável é que tenha surgido na América pelas mãos das tribos Caraíba ou Aruaque.

Ilustração de manuscrito medieval - Foto domínio público - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAEmbora os portugueses tenham demonstrado desconhecimento e surpresa em relação ao uso de leitos suspensos pelos nativos locais, uma imagem de rede já estava registrada, desde o século 14, no Saltério de Lutrell – uma espécie de manuscrito iluminado (ilustrado com iluminuras) composto por Salmos, muito comum na Idade Média, que foi encomendado pelo nobre inglês Geoffrey Lutrell entre 1325 e 1340, e hoje é considerado um dos mais raros e preservados documentos do período.

Além dos Salmos, o livro medieval apresenta temas que retratam a vida cotidiana de nobres e camponeses, incluindo elementos do imaginário popular como monstros e outras figuras que desafiam a ordem natural. A rede é vista em apenas uma ilustração e não parece ter grande destaque na temática do livro, mas o simples registro já demonstra a sua existência pelo menos dois séculos antes da chegada dos europeus.

Até onde foi possível apurar, o fato de a rede ter sido registrada em um livro medieval inglês, antes de portugueses e espanhóis chegarem por aqui, não altera a hipótese de que sua origem esteja nas Américas. Apesar disso, os estudos feitos até o momento ainda não conseguem localiza-la precisamente em uma tribo ou país.Redes na exposição Vaivém - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A rede como leito

Câmara Cascudo acredita que a ideia da rede pode ter nascido “dos balanços lúdicos nas lianas da mata e ocasionais descansos gostosos num breve sentamento nos cipós curvos que laçavam árvores próximas”. Já sua execução teria sido possibilitada pela resistência flexível dos cipós tropicais e inspirada pela forma gradeada dos puçás (ou pequenas redes de pesca).

A criação da rede também pode ter sido impulsionada pela necessidade de um leito suspenso, que deixasse o usuários livres de incômodos e riscos provocados pelos insetos, e pudesse reduzir a temperatura abafada e morna da mata.

A busca de proteção e conforto para o corpo que dorme pode estar relacionada ao significado que os indígenas Exposição Vaivém - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAdavam ao sono. Dormir, para eles, não significava apenas repousar, mas fazer uma viagem enquanto o corpo físico permanece abandonado à sua imobilidade e vulnerável a ataques de inimigos.

Uma história tecida por mulheres

Há uma certa divergência sobre o material original das redes. Segundo Câmara Cascudo, os Aruaque usavam fibra de palmeira e os Caraíba usavam fios de algodão, mas não se sabe o que veio antes. Uma das certezas que se tem acerca das redes é que elas eram produzidas, na maioria das tribos, apenas por mulheres, como registra Gabriel Soares de Sousa, em 1587: “As mulheres deste gentio não cozem, nem lavam; somente fiam algodão, de que não fazem teias, como poderiam; porque não sabem tecer; fazem deste fiado as redes em que dormem, que não são lavradas.”

Teriam sido também as mulheres, nesse caso as portuguesas, as introdutoras dos teares que possibilitaram a produção de redes compactas, compostas por urdidura e trama, estas, com certeza, elaboradas com fios de algodão. Com a nova técnica, as redes ganharam em conforto, tornando-se mais macias, e passaram a ter um caráter ornamental, com franjas e varandas1.

Ilustração com homens carregando morto em rede -  Exposição Vaivém- BLOG LUGARES DE MEMÓRIATambém as redes artesanais nordestinas teriam sido feitas, por muitas décadas, apenas ou principalmente por mulheres. Somente com a industrialização do produto é que a participação masculina passou a ser expressiva.

O abuso das serpentinas

Como ocorre com quase tudo, a história da rede também tem seu lado negativo. Se por um lado os colonizadores ajudaram em sua evolução com a introdução do tear, por outro a utilizaram como meio de transporte urbano das classes mais altas da sociedade, tendo como tração a força física de negros escravizados.

As redes utilizadas para esse fim inspiravam-se nas liteiras portuguesas e espanholas. Eram ornamentadas com dosséis bordados e almofadas, e passaram a ser chamadas de serpentinas. Segundo Câmara Cascudo, esse meio de transporte era abundante até metade do século 18 e, no Nordeste, permaneceu até os primeiros anos do século Capas de revistas do Zé Carioca - Foto Sylvia Leite Exposição Vaivém -  BLOG LUGARES DE MEMÓRIA19.

Seu modelo foi levado pelos portugueses à Ásia e à África e, segundo Cascudo, resistiram por muito tempo em Luanda, Guiné e Goa. Holandeses e judeus que se tornaram os novos proprietários dos engenhos de Pernambuco provavelmente também aderiram ao que o autor chamava de “costume preguiçoso”.

Rede de dormir: de Zé Carioca a Macunaíma

Capa do livro Macunaíma - Matéria Ini ou rede de dormir - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA relação da preguiça com a rede não está presente apenas nos poderosos que eram carregados nelas por negros escravizados. Quem nasceu até os anos 1970, certamente lembra bem de Zé Carioca, criado por Walt Disney cerca de três décadas antes.

O personagem surgiu a pedido do governo americano como parte da “política da boa vizinhança” que buscava uma aproximação com os países da América Latina. Seu lançamento ocorreu no filme Alô Amigos, de 1942, em que Zé Carioca apresenta o Rio de Janeiro a Pato Donald. O filme fez muito sucesso e o personagem passou das telas para os quadrinhos.

Nas revistas, Zé Carioca – e, por meio dele o brasileiro -, foi associado pelos americanos a qualidades como indolência e esperteza. Nas capas, ele sempre aparece deitado na rede, em situações de conforto e relaxamento.

Também no romance Macunaíma, o personagem principal, que recebe o mesmo nome da obra, tem a preguiça como sua principal característica e a rede como seu lugar preferido. É na rede que ele dorme, faz sexo e passa Redes no mercado - Foto de Sylvia Leite BLOG LUGARES DE MEMÓRIAmuitas horas do dia, matando formigas, comendo beiju, bebendo pajuari ou fumando fava de paricá para ter sonhos alegres e gostosos.

Mas, nesse caso, em lugar do significado literal que assume em outros contextos, a preguiça ganha um caráter simbólico de resistência ao colonialismo e à massificação, transformando Macunaíma em uma espécie um anti-herói que desobedece as regras, desafia os valores e se contrapõe ao racionalismo.

E se nos quadrinhos da Disney a rede está intimamente ligada ao personagem principal, em Macunaíma ela integra o dia a dia dos personagens: a mãe do anti-herói que dorme embaixo dele em uma rede maior, o gigante que adoece e passa meses na rede, ou Ci, a mãe do mato, que trepa na rede para brincar com ele.

A rede nas expressões populares

Assim como na Amazônia mítica de Macunaíma, em outras partes do país a rede também tinha um papel fundamental no dia a dia das famílias por isso sua imagem era usada metaforicamente na construção de chavões que Câmara Cascudo chamou de “imagens classificativas”. Quando se dizia, por exemplo, que uma pessoa ‘sabiaRedes à venda  - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA armar a rede’, isso significava que ela tinha grande sabedoria ou habilidade. Os que ‘caiam de rede baixa’ eram os crédulos e inexperientes, que acreditavam em promessas.

Dos covardes dizia-se que ‘cagavam na rede’ e dos desconfiados – com excessos de precaução – dizia-se que ‘dormiam em rede alta’. Os que ‘mijavam na rede’ eram aqueles com comportamento infantil, e os ‘de rede suja’ eram os preguiçosos ou parasitas. Dos vagabundos dizia-se que ‘andavam com a rede nas costas’ e de quem estava em ma situação financeira dizia-se que ‘vendeu até a rede’. Os considerados afoitos e destemidos eram tidos como pessoas ‘de rede rasgada’.

‘Pedir conselho à rede’ significava pensar melhor ou dormir uma noite antes de tomar uma decisão. E havia também os ditos. Se alguém fazia um negócio suspeito e se dava mal, as pessoas sentenciavam: ‘quem dorme em rede furada, amanhece no chão’.Redes à venda em mercado - Foto de Sylvia Leite -- BLOG LUGRES DE MEMÓRIA 3

Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas, usou uma dessas expressões metafóricas no discurso do personagem Riobaldo: “… De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos… Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de ‘range rede’. E me inventei neste gosto, de especular ideia…”

Ao longo do tempo, essa tradição oral foi desaparecendo, assim como alguns costumes relacionados ao uso da rede. Sua produção, que antes era inteiramente artesanal, ganhou dimensão de indústria. Seu uso foi sofrendo mudanças ao longo dos anos, mas seja como leito suspenso, lugar de descanso, veículo para transporte de mortos, elemento de brasilidade, ornamento doméstico ou até escultura, a rede pode ser vista como “símbolo de resistência e permanência dos povos originários do Brasil”3.4

Notas

  • 1 Leia, aqui no blog, matéria sobre a Chácara Sapucaia - o local onde acredita-se que Mário de Andrade teria escrito Macunaíma.
  • 2 Nome dado a uma espécie da faixa lateral, colocada dos dois lados da rede para ornamentação. Como o próprio nome sugere, as varandas são mais ou menos abetas, a depender do projeto. Algumas, mais simples, parecem grades, fitas com fios cruzados presos por nós. Outras, mais elaboradas, assemelham-se a rendas e geralmente são feitas em crochê.
  • 3 Frase veiculada em painéis da exposição Vaivém - curadoria de Raphael Fonseca
  • 4 Leia, aqui no blog, matérias sobre outras tradições culturais do Brasil: Literatura de Cordel / Bumba meu boi / Cuscuz / Queijo do Reino / Auto de Natal / Figureiros de Taubaté / Ini ou rede de dormir

Ini ou rede de dormir – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

Livros

  • Rede de dormir, de Luís da Câmara Cascudo

Exposições

  • Vaivém - curadoria de Raphael Fonseca (Em cartaz no CCBB Rio em dezembro de 2019)
Compartilhe »
Increva-se
Notificar quando
guest
16 Comentários
Avaliações misturadas ao texto
Ver todos os comentários
Anônimo
Anônimo
4 anos atrás

������������ linda materia! Anita Leandro.

Val Cantanhede
4 anos atrás

Excelente matéria, Sylvinha, com riqueza de detalhes que lhe é peculiar!
Lembrei-me de Dorival

Val Cantanhede
4 anos atrás

Continuando..Caymmi, para quem a rede era artigo essencial em suas inspirações poéticas.
Bjs,
Val Cantanhede

Unknown
4 anos atrás

Adorei. Bjs

sonia pedrosa cury
4 anos atrás

Quem não ama uma rede? Eu adoro!!!!
Valeu, Sylvinha!
beijo
sonia.

Deyse
Deyse
3 anos atrás

Excelente este texto sobre as redes ou o Ini. realmente ela se tornou um símbolo, bem típico da brasilidade. Acho que quase em toda casa tem uma né? Utensílio também indispensável pra descanso e curtir a paisagem deitado! Ótimo texto!

Iara
Iara
2 anos atrás

Uau, que especial este post, este estudo tão aprofundado e esclarecedor sobre o" Ini ou rede de dormir: um utensílio que se tornou símbolo de brasilidade". De fato, é um símbolo utilitário brasileiro presente em nosso imaginário. Aqui em MG a rede éuito utilizada, está presente nas varandas, alpendre, nos sítios e fazendas, para aquela soneca da tarde ou descanso.

Roberto Caravieri
2 anos atrás

Que legal saber sobre o Ini * que eu n£ao conhecia( e sobre rede de dormir como um utensilio. De verdade eles s£ao símbolos brasileiros reais. Onrigado por compartilhar, estã muito rico!