

De onde vem a ini, ou rede de dormir
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a rede era feita com fios trançados e assemelhava-se a redes de pescar, por isso Pero Vaz de Caminha a batizou com esse nome, sem sequer perguntar aos nativos como eles chamavam aquele utensilio. O nome pegou e, hoje, mesmo entre os que dormem ou descansam em redes, poucos sabem que ini era seu nome original.
A rede também existia, e ainda existe, em outras partes da América, especialmente no Sul e no Caribe, onde é chamada de hamaca - palavra espanhola que tem origem no idioma indígena taíno e, da mesma forma que a palavra portuguesa, também denomina as redes de pescar.

indicam que a rede de dormir era um utensílio desconhecido na África e Ásia antes de ser introduzido por Portugueses e Espanhóis. Também não foi encontrada na Oceania. O mais provável é que tenha surgido na América pelas mãos das tribos Caraíba ou Aruaque.

Além dos Salmos, o livro medieval apresenta temas que retratam a vida cotidiana de nobres e camponeses, incluindo elementos do imaginário popular como monstros e outras figuras que desafiam a ordem natural. A rede é vista em apenas uma ilustração e não parece ter grande destaque na temática do livro, mas o simples registro já demonstra a sua existência pelo menos dois séculos antes da chegada dos europeus.
Até onde foi possível apurar, o fato de a rede ter sido registrada em um livro medieval inglês, antes de portugueses e espanhóis chegarem por aqui, não altera a hipótese de que sua origem esteja nas Américas. Apesar disso, os estudos feitos até o momento ainda não conseguem localiza-la precisamente em uma tribo ou país.

A rede como leito

A criação da rede também pode ter sido impulsionada pela necessidade de um leito suspenso, que deixasse o usuários livres de incômodos e riscos provocados pelos insetos, e pudesse reduzir a temperatura abafada e morna da mata.
A busca de proteção e conforto para o corpo que dorme pode estar relacionada ao significado que os indígenas davam ao sono. Dormir, para eles, não significava apenas repousar, mas fazer uma viagem enquanto o corpo físico permanece abandonado à sua imobilidade e vulnerável a ataques de inimigos.
Uma história tecida por mulheres
Teriam sido também as mulheres, nesse caso as portuguesas, as introdutoras dos teares que possibilitaram a produção de redes compactas, compostas por urdidura e trama, estas, com certeza, elaboradas com fios de algodão. Com a nova técnica, as redes ganharam em conforto, tornando-se mais macias, e passaram a ter um caráter ornamental, com franjas e varandas*.

O abuso das serpentinas
Como ocorre com quase tudo, a história da rede também tem seu lado negativo. Se por um lado os colonizadores ajudaram em sua evolução com a introdução do tear, por outro a utilizaram como meio de transporte urbano das classes mais altas da sociedade, tendo como tração a força física de negros escravizados.
As redes utilizadas para esse fim inspiravam-se nas liteiras portuguesas e espanholas. Eram ornamentadas com dosséis bordados e almofadas, e passaram a ser chamadas de serpentinas. Segundo Câmara Cascudo, esse meio de transporte era abundante até metade do século 18 e, no Nordeste, permaneceu até os primeiros anos do século 19.
Seu modelo foi levado pelos portugueses à Ásia e à Africa e, segundo Cascudo, resistiram por muito tempo em Luanda, Guiné e Goa. Holandeses e judeus que se tornaram os novos proprietários dos engenhos de Pernambuco provavelmente também aderiram ao que o autor chamava de "costume preguiçoso".
De Zé Carioca a Macunaíma

O personagem surgiu a pedido do governo americano como parte da "policita da boa vizinhança" que buscava uma aproximação com os países da América Latina. Seu lançamento ocorreu no filme Alô Amigos, de 1942, em que Zé Carioca apresenta o Rio de Janeiro a Pato Donald. O filme fez muito sucesso e o personagem passou das telas para os quadrinhos.
Nas revistas, Zé Carioca - e, por meio dele o brasileiro -, foi associado pelos americanos a qualidades como indolência e esperteza. Nas capas, ele sempre aparece deitado na rede, em situações de conforto e relaxamento.
Também no romance Macunaíma, o personagem principal, que recebe o mesmo nome da obra, tem a preguiça como sua principal característica e a rede como seu lugar preferido. É na rede que ele dorme, faz sexo e passa muitas horas do dia, matando formigas, comendo beiju, bebendo pajuari ou fumando fava de paricá para ter sonhos alegres e gostosos.
Mas, nesse caso, em lugar do significado literal que assume em outros contextos, a preguiça ganha um caráter simbólico de resistência ao colonialismo e à massificação, transformando Macunaíma em uma espécie um anti-herói que desobedece as regras, desafia os valores e se contrapõe ao racionalismo.
E se nos quadrinhos da Disney a rede está intimamente ligada ao personagem principal, em Macunaíma ela integra o dia a dia dos personagens: a mãe do anti-herói que dorme embaixo dele em uma rede maior, o gigante que adoece e passa meses na rede, ou Ci, a mãe do mato, que trepa na rede para brincar com ele.´
A rede nas expressões populares
Assim como na Amazônia mítica de Macunaíma, em outras partes do país a rede também tinha um papel fundamental no dia a dia das famílias por isso sua imagem era usada metaforicamente na construção de chavões que Câmara Cascudo chamou de "imagens classificativas". Quando se dizia, por exemplo, que uma pessoa 'sabia armar a rede', isso significava que ela tinha grande sabedoria ou habilidade. Os que 'caiam de rede baixa' eram os crédulos e inexperientes, que acreditavam em promessas.
Dos covardes dizia-se que 'cagavam na rede' e dos desconfiados - com excessos de precaução - dizia-se que 'dormiam em rede alta'. Os que 'mijavam na rede' eram aqueles com comportamento infantil, e os 'de rede suja' eram os preguiçosos ou parasitas. Dos vagabundos dizia-se que 'andavam com a rede nas costas' e de quem estava em ma situação financeira dizia-se que 'vendeu até a rede'. Os considerados afoitos e destemidos eram tidos como pessoas 'de rede rasgada'.
'Pedir conselho à rede' significava pensar melhor ou dormir uma noite antes de tomar uma decisão. E havia também os ditos. Se alguém fazia um negócio suspeito e se dava mal, as pessoas sentenciavam: 'quem dorme em rede furada, amanhece no chão'.
Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas, usou uma dessas expressões metafóricas no discurso do personagem Riobaldo: "... De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos... Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia..."
Ao longo do tempo, essa tradição oral foi desaparecendo, assim como alguns costumes relacionados ao uso da rede. Sua produção, que antes era inteiramente artesanal, ganhou dimensão de indústria. Seu uso foi sofrendo mudanças ao longo dos anos, mas seja como leito suspenso, lugar de descanso, veículo para transporte de mortos, elemento de brasilidade, ornamento doméstico ou até escultura, a rede pode ser vista como "símbolo de resistência e permanência dos povos originários do Brasil"***
*Leia, aqui no blog, matéria sobre a Chácara Sapucaia - o local onde acredita-se que Mário de Andrade teria escrito Macunaíma.
**Nome dado a uma espécie da faixa lateral, colocada dos dois lados da rede para ornamentação. Como o próprio nome sugere, as varandas são mais ou menos abetas, a depender do projeto. Algumas, mais simples, parecem grades, fitas com fios cruzados presos por nós. Outras, mais elaboradas, assemelham-se a rendas e geralmente são feitas em crochê. Dos covardes dizia-se que 'cagavam na rede' e dos desconfiados - com excessos de precaução - dizia-se que 'dormiam em rede alta'. Os que 'mijavam na rede' eram aqueles com comportamento infantil, e os 'de rede suja' eram os preguiçosos ou parasitas. Dos vagabundos dizia-se que 'andavam com a rede nas costas' e de quem estava em ma situação financeira dizia-se que 'vendeu até a rede'. Os considerados afoitos e destemidos eram tidos como pessoas 'de rede rasgada'.
'Pedir conselho à rede' significava pensar melhor ou dormir uma noite antes de tomar uma decisão. E havia também os ditos. Se alguém fazia um negócio suspeito e se dava mal, as pessoas sentenciavam: 'quem dorme em rede furada, amanhece no chão'.
Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas, usou uma dessas expressões metafóricas no discurso do personagem Riobaldo: "... De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos... Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia..."
Ao longo do tempo, essa tradição oral foi desaparecendo, assim como alguns costumes relacionados ao uso da rede. Sua produção, que antes era inteiramente artesanal, ganhou dimensão de indústria. Seu uso foi sofrendo mudanças ao longo dos anos, mas seja como leito suspenso, lugar de descanso, veículo para transporte de mortos, elemento de brasilidade, ornamento doméstico ou até escultura, a rede pode ser vista como "símbolo de resistência e permanência dos povos originários do Brasil"***
*Leia, aqui no blog, matéria sobre a Chácara Sapucaia - o local onde acredita-se que Mário de Andrade teria escrito Macunaíma.
*** Frase veiculada em painéis da exposição Vaivém - curadoria de Raphael Fonseca
Ini ou rede de dormir - Brasil - América do Sul
Texto: Sylvia Leite
Fotos:
(1 e 10) Sylvia Leite
(2, 5, 6 e 8) Sylvia Leite - Exposição Vaiém
( 7 ) Exposição Vaivém
(3) David Mark por Pixabay
(4) British Library: Luttrell Psalter, Add MS 42130, folio 200r, Domínio público
(9) Capa do livro
Referências:
Livro:
Rede de dormir, de Luís da Câmara Cascudo
Artigos:
A imagem da nobreza no Saltério de Lutrell, de Giovanni Bruno Alves e Jaime Estevão dos Reis (orientador).
Exposição :
Vaivém - curadoria de Raphael Fonseca (Atualmente em cartaz no CCBB Rio)
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������������ linda materia! Anita Leandro.
ResponderExcluirValeu, Anita. Volte sempre! bjo
ExcluirExcelente matéria, Sylvinha, com riqueza de detalhes que lhe é peculiar!
ResponderExcluirLembrei-me de Dorival
Beleza, Val!
ExcluirContinuando..Caymmi, para quem a rede era artigo essencial em suas inspirações poéticas.
ResponderExcluirBjs,
Val Cantanhede
Boa lembbraça, Val! Acho que vou acrescentar isso. Beijo
ExcluirAdorei. Bjs
ResponderExcluirObrigada pelo comentário. Da próxima vez não se esqueça de deixar seu nome. Abraço!
ExcluirQuem não ama uma rede? Eu adoro!!!!
ResponderExcluirValeu, Sylvinha!
beijo
sonia.
Eu também, Soninha!
ExcluirExcelente este texto sobre as redes ou o Ini. realmente ela se tornou um símbolo, bem típico da brasilidade. Acho que quase em toda casa tem uma né? Utensílio também indispensável pra descanso e curtir a paisagem deitado! Ótimo texto!
ResponderExcluirObrigada, Deyse! A rede realmente é um símbolo. E nos proporciona uma sensação muito boa de relaxamento. Acho difícil algém não gostar rsrs
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