Laranjeiras: uma cidade símbolo de resistência cultural

Tempo de Leitura: 9 minutos

Atualizado em 09/03/2022 por Sylvia Leite

 Igreja em Laranjeiras - Foto Silvio Oliveira - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO Vale do Cotinguiba, em Sergipe, onde Laranjeiras está localizada, é conhecido historicamente como a região do açúcar por ter concentrado, no século 19, a maioria dos canaviais e engenhos do Estado. Era ali também, consequentemente, onde havia a maior quantidade de negros escravizados. Desse antagonismo resultou uma cidade de duas faces, até hoje em processo de integração, com um forte movimento de preservação da cultura afro.

O embate entre bancos e negros é relembrado anualmente, no mês de outubro, pelo folguedo dos Lambe Sujos X Caboclinhos1– que representam, respectivamente, os negros fugitivos e os índios contratados pelos senhores de engenho para capturá-los.

Lambe-sujos e Caboclinhos - Foto Acrísio Siqueira - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAQuando chega o dia da festa, cerca de 70 homens pintam a pele de preto e vestem shorts e gorros vermelhos – em alusão a uma espécie de disfarce de Saci-Pererê que era usado para assustar os que tentavam se aproximar. Já os representantes dos Caboclinhos pintam a pele de vermelho e ornamentam-se com penas.

No folguedo dos Lambe Sujos vencem os caboclinhos. Segundo a história, foi essa a combinação entre as autoridades e os escravos alforriados que criaram a festa. Os dirigentes da cidade alegavam que a vitória dos negros nessa dramatização poderia estimular a fuga dos que permaneciam escravizados.

Com o passar do tempo a derrota converteu-se em vitória porque o folguedo sobrevive até hoje e, mesmo narrando uma derrota, reforça a resistência da herança afro no município, que é compartilhada por outras forças históricas e culturais.

Grupo folclórico Taieira - Foto Irineu Fontes - LUGARES DE MEMÓRIA Entre as manifestações mais significativas nesse sentido está a das Taieiras – uma dança do ciclo natalino nascida e criada dentro do Terreiro de Santa Bárbara Virgem, que nas religiões africanas corresponde ao orixá Iansã ou Oyá.

Para entender esse folguedo é preciso conhecer um puco da história do sincretismo e da segregação racial. Como os escravos eram proibidos de cultuar seus deuses e obrigados a aderir à religião católica, mas as famílias dos usineiros não aceitavam misturar-se, foram construídas igrejas específicas para eles. Em Laranjeiras, a mais conhecida é a de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.

É dentro dessa igreja que o grupo realiza o seu principal ritual: a coroação da Rainha das Taieiras. Anualmente, no Dia de Reis, as taieiras cantam e dançam diante do altar e, em seguida, a coroa de Nossa Senhora do Rosário é Coroação da Rainha das Taieiras - Foto Irineu Fontes - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA retirada da imagem da Santa pelo próprio padre e colocada na cabeça da rainha das taieiras. A cerimônia já chegou a ser proibida por um pároco local mas pouco tempo depois o grupo conseguiu autorização do Vaticano.

Comunidade quilombola em Laranjeiras

Laranjeiras talvez seja o município sergipano com maior concentração de folguedos, mas esses grupos folclóricos estão longe de ser os únicos veículos de preservação da cultura afro. O esforço pelo reconhecimento da comunidade quilombola da Mussuca2 também teve um papel importante nessa jornada, tanto por evitar a dispersão dos descendentes de escravos como por proporcionar à novas gerações o conhecimento e a apropriação de sua cultural ancestral.

Com cerca de 3 mil habitantes, a Mussuca mantém quatro grupos folclóricos com atividade permanente, dois deles de clara inspiração africana –  Monumento do Marco Zero em |Laranjeiras - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIASamba de Pareia e Samba de Coco. Além disso, preserva um costume que segundo contam os moradores é anterior à Lei Áurea: cada vez que nasce uma criança, as mulheres do Samba de Pareia homenageiam a mãe e o bebê dançando e tomando meladinho3.

João Mulungu: o “Zumbi” de Laranjeiras

Quando se fala em quilombo, os moradores de Laranjeiras lembram imediatamente da figura de João Mulungu, conhecido como o Zumbi sergipano por ter vivido de forma semelhante e morrido pelos mesmos motivos que o líder alagoano.

Sua saga começou no dia em que viu a mãe ser chicoteada até a morte em um engenho da região. A partir daí passou a interagir com grupos libertários do município e perambular por propriedades de toda a região facilitando a fuga de milhares de negros.

Mulungu foi traído por um escravo do engenho onde nasceu, que revelou seu esconderijo às autoridades. Preso, foi condenado à morte para servir como exemplo e amedrontar os negros que tinham pretensão de fugir, mas segundo os registros históricos, aconteceu o contrário: com sua morte a luta pelo fim da escravatura ganhou ainda Instrumentos de tortura no Museu Afro-Brasileiro - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAmais força.

A Laranjeiras das senzalas

A memória do trabalho escravizado é preservada em vários pontos da cidade, a começar pelo marco zero, ou Quarteirão dos trapiches. Em um casarão onde hoje funciona o Centro de Tradições, os escravos eram recebidos e preparados para comercialização: tinham os cabelos raspados, os dentes lustrados e a pele untada de óleo para esconder imperfeições. Aqueles que emagreciam devido ao sofrimento nos navios negreiros passavam também por um regime de engorda.

Os leilões eram feitos do lado de fora, ao lado de um obelisco que tem registrados todos os acontecimentos locais dede a criação do município, no século 17, até sua emancipação cerca de duzentos anos depois.

Outro ponto do circuito é o Museu Afro-Brasileiro, o primeiro com essa finalidade no Brasil, que reúne desde os Sala dos Orixás no MUseu Afro-Brasileiro - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAequipamentos usados na lavoura e na produção de alimentos como arados, carros de boi e casas de farinha, até instrumentos de tortura utilizados para conter e punir os negros fugitivos ou rebeldes.

Peças como uma liteira do século 19 revelam aspectos da vida social e dão uma amostra das penúrias enfrentadas pelos escravos. Os que eram escolhidos para servir nesse meio de transporte tinham que ser fortes e ter dentes perfeitos, pois além de carregar a cabine do senhor ou da senhora nos ombros, ainda deviam manter-se sorridentes.

No primeiro andar, uma imagem de Exu recepciona os visitantes e quase todo o pavimento é dedicado às divindades africanas, com imagens, roupas e instrumentos musicais, culminando na Sala dos Orixás, onde há imagens de cada um deles com suas respectivas caracterizações.

Os que preferem uma experiência mais viva, podem incluir no roteiro o Terreiro Comunitário Filhos de Obá. É um terreiro de origem Nagô, criado pela escrava Maria Joaquina no século 19 e considerado um terreiro de matriz por ter dado origem a vários outros.

Terreiro Filhos de Obá - Foto Acrísio Siqueira - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA A visita começa por um pequeno museu que conta a história do terreiro com peças da época de sua fundação e tem como guia um integrante da casa. Em seguida, é possível fazer a Trilha Filhos de Obá, um caminho preservado na Mata Atlântica que passa pelos assentamentos de Oriás feitos pelos primeiros africanos que chegaram a Laranjeiras. O passeio pode ser concluído com um Banquete de Chão no restaurante de comida africana que funciona no próprio terreiro.

Berço cultural de Sergipe

O resgate e a valorização da cultura afro é apenas uma das vertentes de Laranjeiras. A cidade é considerada o berço cultural, político e econômico do Estado. Além da cana-de-açúcar, o município tinha uma importante atuação também na pecuária e na produção de coco e mandioca. Abrigou a primeira Alfândega de Sergipe pois seu porto fluvial, no rio Cotinguiba, era a porta de saída para quase toda a produção do Estado.

Foi em Laranjeiras que surgiu a primeira escola de Sergipe – o Colégio Nossa Senhora Sant’Anna e alunas dessa instituição teriam sido sabatinadas por Dom Pedro II durante a viagem que ele fez, em companhia da imperatriz Teresa Cristina, para conhecer as cidades mais ricas do país.
Museu Horácio Hora - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA
Consta que em seu período mais florescente Laranjeiras fervilhou culturalmente chegando a ter três teatros que, além das produções nacionais, recebia espetáculos de grandes companhias francesas. Há registros, também, de uma imprensa forte que chegou a ter seis veículos impressos.

Nesse contexto da cultura oficial, a cidade deixou três importantes heranças: João Ribeiro, Horácio Hora e Cândido Aragonez de Faria, respectivamente um jornalista que tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras, um reconhecido pintor do romantismo e um importante ilustrador e caricaturista da Belle Époque.

A memória do primeiro está guardada em um museu que reúne objetos pessoais, livros e fotografias instalado na casa em que ele viveu antes de mudar-se para o Rio de Janeiro.BLOG LUGARES DE MEMÓRIA - Matéria sobre Laranjeiras - Foto Sylvia Leite

Já de Horácio Hora, não há nada além de um auto-retrato pintado na caverna Matriana3, que ele costumava visitar, uma pintura quase apagada pelo tempo que retrata um Jesuíta na caverna da Pedra Furada e um busto no Paço Imperial, dentro do qual foram colocadas as suas cinzas, trazidas de Paris, onde viveu até sua morte, em 1890.

Horácio Hora deixou mais de 300 obras, entre as quais está a famosa Peri e Ceci, baseada na obra de José de Alencar, mas nenhuma delas encontra-se em Laranjeras apesar da cidade ter uma galeria de arte batizada com seu nome.

Mais ausente ainda, e desconhecido de muitos sergipanos, é o ilustrador Cândido Aragonez de Faria, embora seja dos três o que alcançou maior fama. Aragonez, como é chamado pelos poucos conterrâneos que sabem de sua existência, começou a carreira aos 16 anos e de 1902 a 191″1 foi ilustrador das casas Pathé, em Paris, onde produziu centenas de cartazes de filmes.

Entre a cultura oficial e a dos escravos africanos havia os cordelistas e também um poeta nascido em Riachuelo que chegou a Laranjeiras e não saiu mais de lá. João Silva Franco ficou conhecido como João Sapateiro não apenas porque esta era a sua profissão, mas também porque usava sua sapataria para expor os versos que escrevia em letras maiúsculas sobre folhas de cartolina. Ficou tão conhecido na cidade, que tornou-se atração para turistas e hoje sua imagem está perpetuada no Paço Imperial, a poucos metros do busto de Horácio Hora.BLOG LUGARES DE MEMÓRIA - Matéria sobre Laranjeiras - Foto Sylvia Leite

A Universidade e o Encontro Cultural

No plano institucional, a integração das duas culturas dominantes é feita pelo Encontro Cultural de Laranjeiras, realizado anualmente há mais de quatro décadas no período da Festa de Reis. As datas coincidem com uma centenária festa popular que tem seu ponto alto na já citada coroação da Rainha das Taieiras e no cortejo dos grupos folclóricos.

O trabalho de integração das culturas é feito pelo Simpósio, cujos temas abordam elementos das duas culturas e muitas vezes do seu sincretismo.

Outro ponto de convergência é a Universidade Federal de Sergipe que em 2007 instalou uma unidade em Laranjeiras com cinco cursos criados especialmente para esse Campus: Arqueologia, Arquitetura e Urbanismo, Dança, Museologia e Teatro.

Foi o acordo institucional para a criação desse novo Campus que permitiu a restauração do Quarteirão dos Trapiches – local que sintetiza as origens culturais de Laranjeiras e que abriga o seu marco zero.

Notas

Laranjeiras – Vale do Cotinguiba – Sergipe – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

Referências

  • Livro "A Taieira de Sergipe", de Beatriz Góis Dantas.
  • "As cavernas de Laranjeiras", organizado pelo Centro da Terra - Grupo Espeleológico de Sergipe
  • "Cândido de Faria - um ilustrador sergipano das artes aplicadas", de Germana Gonçalves de Araújo.

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Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Como sempre, teus textos são maravilhosos, em conteúdo e linguagem! Beijinho Sylvia ❤ Teca Bussman

Marcelo
5 anos atrás

Trabalhei em Laranjeiras, viajava nontempo todos os dias, fantástica materia.

Luciene
5 anos atrás

Excelente , pesquisa!
Laranjeiras realmente é um museu a céu aberto. Linda cidade.

Neilton Santana
Neilton Santana
5 anos atrás

Mãis uma vez parabens pelo excelente texto sobre nossa cidade de Laranjeiras

Sidney Menezes
5 anos atrás

Laranjeiras nossa terra nossa gente. Legal Silvinha.

Unknown
5 anos atrás

Laranjeiras cidade tem história sobre cultura Nossa Terra que sempre estou participando a cultura e o folclore dança com muito orgulho e sempre serei

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Excelente pesquisa e apresentação. Uma das melhores entre tantos textos maravilhosos. Que riqueza de informações. ������ Augusta Leite Campos

Unknown
4 anos atrás

Excelente texto, abordou muito bem os vários aspectos culturais de Laranjeiras.