Azulejos portugueses: veículos de história e expressão artística

Tempo de Leitura: 6 minutos

Atualizado em 02/10/2023 por Sylvia Leite

Painéis de azulejos portugueses na Estação de São Bento - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Quem diria que pequenas peças cerâmicas, criadas do outro lado do mundo, poderiam converter-se em identidade cultural de um país europeu e tornar-se um dos seus mais importantes veículos de registro histórico? Estou falando, claro, dos azulejos portugueses.

Os azulejos vieram de longe. Foram criados pelos árabes muçulmanos, que os chamam de zillij (ou azzillij, caso se inclua na frente o artigo al que se transforma em az). No mundo árabe, exibiam padrões geométricos que, segundo o simbolismo sufi, traduzia o modo como mundo foi criado e como ele se organiza, ou seja, sua cosmogonia e sua cosmologia. Em muitos casos, não eram quadrados, como os que conhecemos hoje. Tinham Azulejos portugueses - - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA aparência de estrelas, pétalas e outras formas abstratas – determinadas na fase de produção ou em cortes posteriores – e compunham mosaicos1.

De sua origem até a chegada em Portugal, o azulejo passou pela intermediação da Espanha, onde predominou a forma quadrada. Conta-se que foi lá, mais precisamente em Sevilha, que o Monarca Dom Manuel I adquiriu, em 1498, as primeiras peças para decorar o Palácio Nacional de Sintra. A partir daí, o azulejo começaria a ganhar uma nova identidade.

Mais de cinco séculos de história

Durante cerca de 70 anos, Portugal importou azulejos da Espanha. A temática era sempre geométrica ou vegetal (arabescos). Mas a crescente utilização desse tipo de revestimento fez com que, por volta de 1.560, surgissem as primeiras olarias portuguesas e, com elas, fosse aberto o caminho para uma produção com características próprias,Painel de azuegos azuis e brancos - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA constituídas a partir de influências diversas.

As formas geométricas permaneciam, mas aos poucos tiveram que dividir espaço com composições figurativas. Episódios históricos, militares ou religiosos, narrativas mitológicas e até mesmo situações cotidianas foram reproduzidos nos painéis decorativos de palácios e igrejas.

A introdução das cenas abriu espaço para o surgimento de trabalhos autorais e desse movimento nasceu a crítica social, expressa de forma irônica ou caricata. Entre as obras críticas, destacam-se as que sofreram influência de um gênero artístico bastante utilizado na arte flamenga conhecido como Singeries” ou “Macacaria” por retratar cenas sociais em que os humanos são representados como macacos na tentativa de ressaltar seus aspectos mais primitivos.

Azulejos coloridos -- Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA As técnicas de produção do azulejo, assim como suas temáticas, sofreram influências diversas ao longo do tempo, tanto de outras culturas, como dos estilos artísticos que se sucederam ao longo dos séculos, como é o caso da própria Macacaria, do Barroco, Rococó e Maneirismo, entre outros.

Azulejos portugueses: uma mescla de influências

A mescla de influências foi tornando-se cada vez maior, mas a herança árabe permanecia, ainda que, em alguns momentos, assumisse diferentes configurações. É o caso dos ”’Azulejos de padrão’, inspirados em peças têxteis, como tapetes e tapeçarias. A característica central desses painéis é a criação de um padrão, que em geral é repetido várias vezes, mas alguns deles demandam dezenas de peças para compor um único desenho que ocupa sua totalidade.

Painel de inspiração têxtil - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA A inspiração têxtil não se limitou aos exemplares árabes. Inúmeros painéis apresentam motivos antropomórficos retirados de tecidos chineses e indianos, influências obtidas nas colônias portuguesas da Ásia. Muitos desses motivos assemelham-se aos que encontramos nas famosas colchas de Castelo Branco, que receberam a mesma influência oriental.

Outra importante aquisição foi um motivo conhecido como Albarrada,vindo da cerâmica flamenga,que traz um jarro ou cesto de flores ao centro, com pássaros, crianças ou golfinhos dos dois lados, de modo que, na repetição, se cria uma espécie de barra.

Uma das características fundamentais dos azulejos portugueses, segundo historiadores, é esse diálogo que estabelecem com as outras artes. Além das cenas e padrões explorados por pintores, ceramistas e tecelões há, em alguns casos, uma referência à ourivesaria, em padrões que imitam jóias como anéis, correntes e pulseiras.Fachada de azulejos azuis e brancos -- Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Os azulejos pombalinos

Depois do terremoto de 1755, Portugal teve que ser reconstruído e, nesse momento, os azulejos ultrapassaram a esfera oficial, formada pelo clero e pela nobreza, para integrar-se também ao universo burguês. Homens de negócios, com certo poder aquisitivo, passaram não apenas a encomendar painéis para a decoração de suas casas e quintas, mas também a se auto-representarem nessas obras, pontuando, com isso, uma mudança na própria história do país.

Um caso típico são sete painéis encomendados pelo chapeleiro Antonio Joaquim Carneiro para a casa onde residia que narram sua trajetória, desde a infância pobre no campo, passando pelo trabalho com um tio chapeleiro, e pelo casamento com uma viúva rica, até a criação de sua própria fábrica de Tradicionais azulejos azuis e brancos -- Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA chapéus.

Além do deslocamento do consumo do azulejo na escala social, houve também, nesse período, um movimento geográfico. Se antes eram tratados como elegantes ornamentos dos espaços interiores de palácios e igrejas, a partir daí passaram a ser usados no revestimento externo de prédios públicos e também de residências. Na mesma época, teve início a sua utilização em banheiros, cozinhas e outras áreas internas menos nobres.

Esses azulejos semi-industriais passaram a ser chamados de “Pombalinos” em alusão a Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, a quem foi dada a tarefa de reconstruir o país depois do terremoto.Azulejos com padrão geométrico -- Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

O país mais azul do mundo

Embora existam mundo afora cidades totalmente azuis2, e nenhuma delas seja portuguesa, é a Portugal que cabe o título de ‘País mais azul do mundo’ em referência à combinação das cores azul e branco que compõe uma grande parte de seus painéis e que acabou marcando a identidade do azulejo português.

As razões que levaram à utilização dessas cores são diversas. A primeira delas seria o contato com a azulejaria holandesa que, por sua vez, já havia sofrido influência da porcelana chinesa. Sabe-se que no fim do século 17, Portugal começou a importar painéis da Holanda e esse comércio durou cerca de cinco décadas. As olarias holandesas utilizavam um tom compreendido entre o azul cobalto e o roxo manganês e alcançavam, com isso, um padrão de alta qualidade e baixo custo. No início do século 18, a produção passou a ser feita em Portugal, mas o azul e branco usado nas décadas anteriores já estava consolidado.

Painel com retrato de Fernando pessoa - - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Estudiosos do simbolismo, no entanto, atribuem permanência dessa combinação ao significado da cor azul, que pode dar margem a inúmeras interpretações. Uma das mais comuns é o fato de ser a cor do céu e, portanto, relacionada à instância divina. Isso traria, por um lado, um aspecto de paz e profundidade e, por outro, uma conotação de superioridade e poder.

Mas a utilização de azul e branco marcou um período muito bem definido na história dos azulejos portugueses, localizado especialmente no século 18, e hoje em dia o que se produz com essas cores é feito em alusão àquele período histórico. Desde o início até o momento, a arte de azulejaria portuguesa sempre manteve diálogo com as tendências da arte mundial e os azulejos artísticos produzidos no momento inserem-se perfeitamente no contexto artístico contemporâneo, marcado pela diversidade formal, técnica e de suporte.

Atualmente, Portugal é considerada a capital mundial do azulejo e constitui um museu a céu aberto dessa arte, pois uma boa parte das obras – sejam simples revestimentos decorativos ou importantes painéis artísticos – está nas fachadas de igrejas, prédios públicos ou simples residências de praticamente todas as cidades do país. Acredita-se que o lugar com a maior concentração de azulejos portugueses seja a cidade de Ovar, no distrito de Aveiro, mas há painéis e revestimentos interessantes por toda parte, especialmente na Estação de São Bento3, no Porto, e no Museu Nacional do Azulejo que fica em Lisboa e reúne desde peças históricas dos primeiros tempos até obras modernas e contemporâneas.

Notas

Azulejos portugueses – Várias cidades – Portugal – Europa

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  • Sylvia Leite

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Virginia Finzetto
5 anos atrás

Bom, sou suspeita para eleger este tema como meu preferido. Que viagem fantástica essa matéira. Leitura pra lá de agradável, Sylvia Leite. Parabéns.

Neilton Santana
Neilton Santana
5 anos atrás

Acabo de retornar de Portugal e mais uma vez pude apreciar a arte da azulejaria existente por toda parte. Realmente é um país azul. Parabéns pelo belo texto

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Silvinha, sou apaixonada pelos azulejos portugueses. Parabéns pela matéria. Beijos. Aida Carrera

Sidney Menezes
5 anos atrás

Muito bom Silvinha. E, ainda me deu um ideia neste exato momento para algo que estou a fazer aqui em Pirambu. Beijos.

Unknown
5 anos atrás

Lindas obras de Arte.amei

Val Cantanhede
5 anos atrás

Que delícia de texto, Sylvinha!
Viajei pelas terras do Alentejo de novo.

Unknown
5 anos atrás

Gostaria muito de aprender a restaurar azulejos
Quem souber de algum curso ou oficina de grátis, puder me ibforinf eu agradeca

Unknown
5 anos atrás

Genial. Eu não fui ao Museu do Azulejo. Um motivo a mais para voltar.

Cintia Grininger
3 anos atrás

Acho incrível essa história da origem dos azulejos portugueses! A arte nos azulejos é tão linda e tão peculiar, um verdadeiro patrimônio da humanidade.

Jonivaldo Marques da Silva
Jonivaldo Marques da Silva
2 anos atrás

Excelente matérial!