Candeal: desenvolvimento social ao som dos tambores

Tempo de Leitura: 6 minutos

Atualizado em 07/04/2022 por Sylvia Leite

Casas coloridas no Candeal - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAMuita gente conhece ou ouviu falar na Timbalada – uma banda baiana surgida no comecinho da década de 1990, que ganhou repercussão internacional pelo ritmo dançante e por ter como ícone um instrumento pouco conhecido e até então marginalizado: o timbau. O que talvez poucos conheçam é o movimento social surgido na esteira do sucesso alcançado pelos timbaleiros. Em parceria com diversas instituições, a comunidade do Candeal Pequeno, que já foi uma das mais pobres de Salvador, ganhou e segue conquistando sustentabilidade. E como diria Caetano, “é bonito de se ver”.

Além da beleza intangível, expressa pelas oportunidades oferecidas a milhares de jovens, pela afirmação da cultura ancestral do bairro e pela melhoria na qualidade de vida da população, os projetos sociais trouxeram beleza estética. Casas foram pintadas pelos próprios moradores com tintas coloridas, locais públicos e comerciais receberam grafitis ou mosaicos. As ruas pelas quais taxistas se negavam a passar viraram cenário para a gravação de clipes.

Timbau – o instrumento da libertação

Fonte no Candel - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIATudo começou com o resgate do timbau, instrumento baiano inspirado no Caxambu – tambor cerimonial utilizado em uma manifestação afro-brasileira denominada Jongo. A proposta, segundo declarações públicas do idealizador da Timbalada, Carlinhos Brown, foi retomar a cultura angolana e propor um novo ritmo usando o som da percussão.

Era o começo dos anos 1990, momento em que os trios elétricos estavam incorporando o samba-reggae dos blocos afro, como Ilê Aiyê e Olodum, e os tambores, antes restritos às periferias e bairros pobres de Salvador, chegaram também às classes mais altas que já corriam atrás dos trios desde a década anterior. Do carnaval, os blocos afro foram às gravadoras. O caminho estava aberto para os tambores, mas a Timbalada seguiu pela contramão, invertendo o roteiro seguido por outros grupos de percussão: primeiro se lançouEscadaria e grafite - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA como banda para depois criar o bloco, o que só ocorreu no carnaval de 1995.

A música afro-baiana revolucionou a hierarquia dos músicos, elevando o percussionista de uma condição secundária, de acompanhamento, à condição de criador, e abrindo espaço para sua participação em festivais e prêmios internacionais. Mas a consequência principal foi o empoderamento conquistado por esses grupos, que acabou se refletindo nas respectivas comunidades de origem, como é o caso do Curuzu, do Ilê Aiyê, e do Candeal, da Timbalada.

O milagre dos timbaleiros

Grafite no Candeal - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAPara entender o que a virada dos tambores representou para a comunidade do Candeal Pequeno, é preciso conhecer um pouco a história do lugar.

O Candeal é uma área do bairro de Brotas, localizado em uma região nobre e central de Salvador, e está dividido em duas partes: o Candeal Grande, que é um bairro de classe média e o Candeal Pequeno que é a comunidade onde nasceram Carlinhos Brown e a Timbalada.

Conta-se que o local começou a ser povoado no século 18. No início era uma senzala e foi comprado pela escrava alforriada Josefa Santana que voltou da África para libertar seus parentes. Como era muito rica, pagou pela liberdade de vários negros e, com eles, deu início a uma plantação de cana-de-açúcar.

Moradores e estudiosos calculam que ainda existam no local cerca de 250 descendentes seus, mas a época de bonança foi se perdendo ao longo do tempo. A comunidade atual ocupa uma área de aproximadamente 20 mil metros quadrados, onde vivem cerca de 1.500 famílias de baixa renda, cercadas por bairros de classe média e alta.Grafite com imagem de Nossa Senhora no Candeal - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Antes de Carlinhos Brown começar a implantar seus projetos sociais, o local não tinha calçamento, nem saneamento básico, nem posto de saúde. Quando chovia, as ruas ficavam cobertas de lama.

Por sorte dos moradores, a degradação não atingiu os valores culturais, resguardados por meio das serestas e dos terreiros de Candomblé que os moradores frequentava. O próprio Carlinhos, quando era criança, batucava nas latas que usava para ir buscar água na bica. E, como ele, muitos outros, de várias gerações, cresceram fazendo e ouvindo batuques, ora de lata, ora de tambores. E tudo isso foi fundamental para o reerguimento da comunidade.

Associação Pracatum - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAUma série de ações educacionais e de desenvolvimento integrado, aliadas ao talento musical dos moradores, transformaram a realidade do Candeal em poucos anos. Para coordenar o trabalho, foi criada a Associação Pracatum de Ação Social, que atua em dois eixos principais: o programa de desenvolvimento ‘Tá Rebocado’ e o ‘Programa de Música, Educação e Cultura’.

Aula de percussão na Pracatum - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA parte de ação social é voltada para a urbanização e a implantação de serviços no bairro. Inclui também o projeto ‘Recicle óleo’, que tem caráter ambiental, mas sua principal função é promover a inclusão produtiva de mulheres da comunidade na fabricação de sabão e no refinamento de óleo de gordura residual (OGR) para a produção de biodiesel.

No eixo educacional, a Escola de Música Pracatum, formou em menos de 30 anos cerca de 5 mil percussionistas, do Candeal e de outros bairros de Salvador, muitos deles já absorvidos pelo mercado de trabalho no Brasil e no exterior. A escola realiza ainda cursos e oficinas nas áreas de comunicação e tecnologia e, a pedido das famílias, mantém uma escola de Inglês.

Fachada do Guetho - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO Candeal também ganhou uma casa de shows Candhyall Guetho Square (mais conhecida como o Guetho) onde havia constantes apresentações e a Timbalada ensaiava aos domingos, sempre com plateia lotada por baianos e turistas, mas as atividades não puderam continuar porque incomodavam os moradores dos bairros vizinhos.

Atualmente, funciona no local um estúdio de gravação de Carlinhos Brown e o Cantinho da Tita – restaurante de dona Madá, a mãe do timbaleiro, que só atende com reserva e serve pratos baianos feitos na hora. A espera é grande, mas ninguém reclama porque o tempo de preparo das refeições costuma ser pouco para os visitantes conhecerem, ou revisitarem, todos os espaços do Guetho. O local reúne referências de diversas religiões e fraternidades, como a maçônica, por exemplo, além de sinais de trânsito, detalhes dos mais diversos estilos arquitetônicos, uma carcaça de foguete restaurada e poemas estampados nas paredes.

Como era de se esperar, a virada do Candeal encantou pessoas pelo mundo afora. O bairro recebeu visitas de dirigentes internacionais como o Ministro da Cultura e Mídia da Alemanha, Bernd Neumann e de monarcas, como o rei Felipe VI da Espanha que na época da visita ainda era príncipe. Foi tema do documentário “El milagro de Candeal” dirigido pelo espanhol Fernando Trueba e recebeu muitos prêmios, entre eles o “Beste Practice” das Nações Unidas, o de “Mensageiro da verdade”, da ONU Habitat, e o de reconhecimento pelo trabalho artístico e social, da Fundação Claus Awards, da Holanda. 1

Notas

Candeal Pequeno – Brotas – Salvador – Bahia – Brasil – América do Sul

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  • Sylvia Leite

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sonia pedrosa cury
5 anos atrás

Candeal maravilhoso! Estive lá, há alguns bons anos, com Claudia, conversamos com Carlinhos Brown e conhecemos o lindo trabalho dele. Belo registro, Sylvinha! Beijos!

Jane Alves
5 anos atrás

Que beleza, Sylvinha!Tanta coisa boa que precisa ser muito divulgada para nós dar alegria e esperança no futuro do País! Suas escolhas de Lugares de Memória são sempre surpreendentes e encantadoras. Textos concisos e muito informativos, ao mesmo tempo. Parabéns!

Celia Regina Moraes Leme
5 anos atrás

Não conheço o Candyal, mas fiquei interessada em ir até lá, pela história que você descreveu. Tá na minha lista obrigada Sylvia. Beijos

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Parabéns Silvia!
São maravilhosos e de bom gosto todos blog 'lugares de memória' que vc posta. Gilca

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Só mesmo a arte para manter acesa a chama ancestral!
Texto delicioso de ler, Sylvinha!
❤❤❤ Val

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Esse projeto é muito bom! Seu padrinho maior, o Carlinhos Brown usou da sua fama, vivência e amor pelo seu local em benefício dessa comunidade. O Gueto Square virou point da jovem elite baiana e turistas abonados, que é questionável… Tudo bem que precisavam captar recursos, mas os dólares foram mais valorizados, e como! que o nosso parco Real. Cobravam "entradas" caríssimas e consumo de bar pra poucos. Não é espaço para "todos" os baianos…
Esse restaurante da mãe de Brown, deve ser pra Popstars, rsrs.
Mas, queira ou não, a valorização e empoderamento desta Comunidade foi um ganho que não podemos dimensionar.
Essa matéria me incentivou a ir lá visitar de perto! Ótima matéria! Laís Alves

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Bem legal!! Não conhecia… bem interessante!! Beijos querida Ude

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Sou fa do Carlinhos Brown. Não sabia nada sobre o Candeal Pequeno. Morei em Salvador de 1977 a 1982 e nunca ouvi referência a ele. Parabéns Sylvia por nos levar a esse universo. Augusta Leite Campos