
Construídas, em sua maioria, no século 19, elas surgiram em consequência do desenvolvimento da indústria têxtil, que impulsionou o comércio e trouxe consigo a modernidade. Naquele momento tinha início a utilização das barras de ferro e a introdução do vidro nas construções, elementos que, juntos, deram forma a suas coberturas transparentes.
São becos escavados entre os prédios, inspirados nos souks orientais, que atravessam quarteirões encurtando distâncias e oferecendo a possibilidade de se viver a experiência das ruas em ambientes protegidos do frio, da chuva e de outros desconfortos do ambiente exterior. É o fora como se fosse dentro ou o dentro como se fosse fora.
Essa condição de ambiguidade e de intermediação marca as passagens desde o seu surgimento. Na época em que foram criadas, dizia-se que proporcionavam a comunhão entre o comércio e a arte - utilizada em vitrines e decorações - e faziam a ponte entre o passado e o futuro, já que uniam os antigos hábitos aos desejos de consumo que começavam a ser despertados.
Símbolos da transição
As passagens surgiram em meio às Exposições Universais em que a Agricultura, as Belas Artes e a Indústria apresentavam seus produtos a espectadores ávidos por novidades. Apesar de efêmeros, esses eventos deixavam rastros que se materializavam especialmente em monumentos arquitetônicos como é o caso da Torre Eiffel, inaugurada na Exposição Universal de 1889, em comemoração ao centenário da Revolução Francesa.Na mesma época, despontavam os famosos panoramas - entretenimento precursor do cinema que proporcionava a observação da natureza dentro de um ambiente fechado, alterando a relação dos espectadores com a paisagem. Eram recintos redondos, com paredes cobertas por pinturas murais que, por meio de recursos luminosos e sonoros, infundiam no espectador a ilusão de visualizarem paisagens reais.
A cidade estava mudando e as passagens cobertas expressavam aquele momento de transição. A tal ponto que, décadas depois, tornaram-se tema e título de um monumental estudo sociológico empreendido por Walter Benjamin sobre
as transformações econômicas e tecnológicas do Século 19 e seus impactos sobre a sociedade parisiense, especialmente em sua forma de percepção.
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Le Flâneur, 1842 (Wikipedia) |
São figuras tão complexas que, como disse o poeta e crítico de arte Charles Baudelaire, "a linguagem não pode definir senão toscamente". Carateriza-se, segundo ele, pelo prazer que sente em "estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo".

O flâneur é o personagem símbolo das passagens, ora visto como vagabundo e ocioso, ora tido como um contestador da divisão do trabalho e considerado por Benjamim como um intermediário entre o burguês e a multidão. Sua atividade, a flânerie, é comumente traduzida por passear calmamente, apenas observando, e pode ser tranquilamente confundida com a contemplação exercida por muitos artistas.
O livro de Walter Benjamin nunca foi concluído e, mesmo assim, tornou-se um clássico, com publicações pelo mundo afora em edições que reúnem mais de mil páginas.
Inspiração para projeto social
Mas Benjamin não foi o único que se deixou impressionar pelas características e significados das passagens. Charles Fourier, considerado precursor do cooperativismo, viu nas "ruas-galerias" a possibilidade de integração entre as várias partes de Paris e, portanto, entre as classes sociais. Além disso, o fato de as passagens poderem abrigar, em um mesmo espaço, todo tipo de estabelecimento comercial ou artístico, fez com que lhe parecessem sistemas auto-suficientes.
Com base nessa ideia de completude e integração, Fourier criou um projeto urbano revolucionário, batizado como Falanstério ou falange, que teve eco em várias partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos e no Brasil.
Eram organizações voluntárias, que deveriam ter no máximo 1.600 moradores e formar uma extensa rede colaborativa para dar origem a uma nova realidade social. Nesse sistema, cada um podia escolher seu trabalho e trocar de função quando desejasse.
Por inúmeras razões, a maioria durou menos de cinco anos. O único que quase chegou a uma década foi construído em Guise*, no Norte da França, por Godin - um industrial de origem operária que era seguidor de Fourier. Apesar de não existir mais como falanstério, suas instalações estão preservadas e hoje funcionam como museu.
Um convite à flânerie
As passagens, ao contrário dos falanstérios, não desapareceram, mas chegaram a agonizar. Das cerca de 150 citadas na maioria dos registros, restam apenas 20 e algumas delas tiveram que ser resgatadas pois encontravam-se em estado de abandono.
A Jouffroi talvez seja a que preserva com maior nitidez seus traços originais. Nela sobrevivem o museu de cera Grévin, de 1882 - um dos mais antigos da Europa - e o hotel Chopin, tradicionalmente conhecido como um local romântico. Ali também podem ser encontradas lojas especializadas em brinquedos antigos, livros raros e bengalas.
No quesito luxo, enquadram-se a Véro-Dodat e Viviene. A primeira deve seu nome a dois ricos salsicheiros, Véro e Dodat, que decidiram contruí-la para encurtar caminho entre o Palais Royal e o Les Halles, antigo mercado da cidade. Hoje, a galeria reúne elegantes lojas e galerias de arte. A segunda é a mais famosa de todas, provavelmente por combinar uma arquitetura suntuosa, que inclui mosaicos e esculturas, com lojas de grifes famosas e lugares especiais para tomar vinho ou chá.
Algumas passagens apresentam maior especialização. É o caso da Brady, que concentra lojas e restaurantes indo-paquistaneses. Em contraste com as anteriores, não possui qualquer luxo, mas revela uma face de Paris que só é conhecida pelos franceses ou por quem consegue visitá-la em companhia de um morador da cidade. Está localizada no Fraubourg Saint-Denis, uma região muito badalada e frequentada por jovens.
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A du Caire, composta quase exclusivamente por lojas de armarinho, aviamentos e roupas, é a mais antiga de Paris. Foi foi construída em 1798, durante a campanha de Napoleão no Egito, e nos primeiros tempos concentrava ateliês de impressão e litografia.
Outra bastante antiga é a Passage des Panorames, aberta em 1799 entre duas
torres (depois destruídas) onde eram exibidos os famosos "panoramas".
Essa passagem teve tanta importância em sua época áurea, que foi um dos
primeiros lugares a receber iluminação a gás. Hoje concentra restaurantes,
bares de vinho, lojas de cartões postais, selos e moedas antigas, além do
Teatro de Varietés, que funciona desde o século 19.
Há ainda outras bastante famosas como a du Grand-Cerf, considerada uma das mais bonitas, e a Colbert, que pertence ao Instituto Nacional de História da Arte e reúne instituições dessa área e do Patrimôno Cultural.
O mais curioso, no entanto, é que dois séculos depois, e tendo atravessado tantas mudanças históricas, as passagens ainda consigam exercer fascínio e sigam convidando seus visitantes a, pelo menos por alguns momentos, aderirem à flânerie.
Esta matéria contou com a colaboração de Adriana Straumann (Didi) que anos atrás me levou para conhecer as passagens e agora me ajudou a compor o mosaico da memória, complementando informações e tirando dúvidas.
* 'lugares de memória' terá uma matéria específica sobre o Falanstério de Godin, construído em Guise. Aguardem!
Referência bibliográfica:
Passagens, de Walter Benjamin.
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Para ler sobre outros lugares de memória, clique nos links abaixo:
Oficina Brennand
Pérgamo
Oráculo de Delfos
Passagens parisienses - Paris - França
Texto: Sylvia Leite
Fotos: Laura Zacarelli e Adriana Straumann.
Referência bibliográfica:
Passagens, de Walter Benjamin.
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Oficina Brennand
Pérgamo
Oráculo de Delfos
Está melhor a cada semana... Parabéns pelo lindo blog, uma leitura obrigatória, toda quinta-feira!
ResponderExcluirObrigada, Leandro! Bom saber que você é leitor assíduo. Beijo.
ExcluirExcelente!
ResponderExcluirObrigada. Faltou deixar seu nome!
ExcluirDelícia .... de passeio. Gracias
ResponderExcluirEu que agradeço, Hilda. bj
ExcluirComo sempre um texto claro e inusitado. Esse ano volto a Paris vou salvar o texto para me guiar por lá. Parabéns mais uma vez
ResponderExcluirFaça isso. Você não vai se arrepender. As paisagens são fascinantes.
ExcluirMaravilha de texto. Tudo bem organizado. Achava, que ter ido em Paris eu conhecia. Agora com todos esses detalhes para guardar na memória, foi muito legal. Parabéns, cada dia melhor. Beijos
ResponderExcluirObrigada, Maria Helena! Bom ter você aqui toda semana. Beijo.
ExcluirSylvia , Não me lembro do tema ter chamado a minha atenção até ler sua matéria . Não conhecia então as Passagens , menos Ainda no seu contexto histórico . Com certeza um lugar especial a ser conferido numa próxima visita ! Obrigada por nos brindar com essa memória num texto para lá de interessante! 👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirEu conheci muitos anos atrás, levada por uma amiga que mora lá, Didi, e fiquei encantada. É uma viagem a um passado que não vivenciamos na época áurea, mas que podemos vivenciar agora. Uma sensação incrível. Bem diferente de visitar uma ruína, ou qualquer monumento histórico, porque lá continua pulsando.
ExcluirMe senti inativada por essa sua excelente matéria, a conhecer essas passagens cobertas de Paris. Oxalá em breve possa conhecê-las. Grata. Beijs
ResponderExcluirSão lindas. Você vai adorar!
ExcluirOps, acima quis dizer: fiquei instigada por ....
ResponderExcluirEu entendi rsrs
ExcluirCorrigindo: me senti instigada por essa sua ...
ResponderExcluirkkk
Excluirmuito inspirador. Obrigada por reunir estas informações sobre as passagens deixando-as à disposição. devidamente anotadas.... agora é partir para visitá-las!
ResponderExcluirDiva
Eu que agradeço, Diva, pela leitura e pelo comentário. Volte sempre. Toda quinta tem matéria nova no blog.
ExcluirDelícia de texto! Obrigada!
ResponderExcluirEu que agradeço, Marta, pela leitura e pelo comentário.
ExcluirComo sempre com matérias perfeitas. Um texto delicioso de ler. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada, Hebe! Toda semana tem matéria nova no blog. Acompanhe! Abraço.
ExcluirQue leitura incrível e deliciosa o seu texto sobre as passagens parisienses. Eu nunca tinha atentando para isso e desconhecia a história por trás dessas passagens. Paris é uma das minha paixões e adoro conhecer mais sobre aquela cidade. Obrigada pelas informações.
ResponderExcluirEu que agradeço, Normeide. Pela leitura e pelo comentário. Toda quinta tem matéria nova no blog. Acompanhe.
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