Oficina Brennand: lugar de transmutação

Tempo de Leitura: 6 minutos

Atualizado em 07/05/2024 por Sylvia Leite

Entrada da Oficina Brennand - Foto de Gustavo Moura -BLOG LUGARES DE MEMÓRIAUm túnel verde faz a passagem entre o mundo real do Recife e o universo mágico da Oficina Brennand, localizada no bairro da Várzea, subúrbio da cidade, ao lado de remanescentes de Mata Atlântica e à margem do rio Capibaribe. O impacto da visita é proporcional ao potencial ‘alquímico’ do lugar, que se irradia no tempo e no espaço.

A primeira transmutação ocorreu muito antes de sua constituição como oficina artística e atingiu o próprio Francisco Brenand, seu criador, que saiu do Brasil aos 21 anos para estudar pintura na Europa acreditando que a cerâmica fosse uma arte menor. Bastou uma semana em Paris para aquele desdém se transformar em desejo de realização. Convidado pelo artista plástico Cícero Dias a visitar uma exposição de Picasso, ficou surpreso ao constatar que em vez de quadros, o mestre da pintura estava expondo uma coleção de aproximadamente 300 cerâmicas. Nesse dia, Brennand jurou que quando voltasse ao Brasil se dedicaria com Arcada na Oficina Brennand - Foto de Gustavo Moura - BLOG LUGARES DE MEMORIAseriedade àquela forma de arte que ele havia desprezado.

Depois veio a transmutação física dos materiais, repetida cada vez que se acendia um forno para que a argila retirada da terra fosse transformada. E dali saiam esculturas de inspiração totêmica, ladrilhos sobre os quais eram pintados os murais ou simples peças de pisos e revestimentos que, vendidas, bancariam os custos iniciais de todo esse complexo.

A terceira diz respeito a nós, os visitantes. Gostemos ou não de suas formas e cores, é impossível não mudar o estado interno, seja por arrebatamento ou por incômodo, diante de tamanha riqueza de significados. Tanto os ambientes internos como os jardins, estão repletos de alusões a seres mitológicos e a símbolos culturais e religiosos das mais diversas tradições.

Brennand conversa com visitantes - Foto de Gustavo Moura- BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA capela cristã, por exemplo, convive com figuras da mitologia greco-romana, lagartos, basiliscos, monstros e um Templo do Sacrifício que remete ao massacre das civilizações pré-colombianas. Para completar, em todo o complexo está presente a marca da oficina que traz a imagem do arco e da flecha de Oxóssi, uma das divindades africanas.

O que parece imprimir unidade ao conjunto é a ideia de reprodução, expressa na maioria das vezes por meio de formas sexualizadas e vista por Brennand como o veículo para obtenção da imortalidade e da eternidade: “As coisas sobrevivem porque se reproduzem”, diz. Nesse conceito, se fundamentam todas as obras e todos os temas que as permeiam.

O ovo como matriz: tema central na Oficina Brennand

Totens com relevos em forma de ovo - Foto de Gustavo Moura-BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A imagem central é a do ovo, considerado pelo artista como o ponto de partida de seu trabalho e de seu pensamento e explorado incansavelmente em dezenas de peças. Ora aparece inteiro, ora em rebentação. Algumas vezes dá contorno à escultura, em outras aparece como detalhe; mas todos parecem responder a uma matriz, localizada na praça das esculturas.

Ali, dentro de um mini templo de cúpula azul, encontra-se um ovo suspenso que concentra todos esses significados. Para protegê-lo, foi erguida uma muralha repleta de sentinelas. São os Pássaros Roca – figuras criadas por Brennand e batizadas com esse nome em alusão à ave mítica da história de Simbad, o Marujo, incluída no Livro das Mil e Uma Noites.

Além das esculturas e da parte arquitetônica, a Oficina Brennand abriga centenas de pinturas e desenhos do artista. Ele não confirma, mas calcula-se que existam ali cerca de duas mil obras. O número pode parecer exagerado, mas torna-se mais realista ao constatarmos que a área total da oficina chega a 15 mil m² e que nesse espaço funcionam uma galeria (Academia), um espaço para eventos (Estádio), dois templos, um auditório, um café, uma loja, uma capela restaurada por Paulo Mendes da Rocha e jardins projetados por Burle Marx que incluem fontes e espelhos d’água.

A herança familiar na Oficina Brennand

Pátio principal da Oficina Brennand - Foto de Gustavo Moura - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA atual Oficina Brennand foi erguida em 1971 a partir da restauração dos galpões abandonados da Cerâmica São João, fundada por seu pai em 1917. Assim como o filho, Ricardo Brennand não tinha motivação comercial. Era proprietário de usinas de açúcar e queria a fábrica de telhas e tijolos somente por paixão, pois colecionava porcelana e obras de arte.

Com esse histórico, Francisco teve campo fértil para desenvolver seu talento. Quando criança, brincava com os irmãos na olaria e já percebia ali um clima de mistério, olhando para os fornos com se fossem catacumbas. Também nesse lugar, conviveu com o artista plástico Abelardo da Hora, que trabalhou na fábrica, e aprendeu com ele a fazer esculturas.

Aos 15 anos, foi encarregado pelo pai de acompanhar a restauração de obras de arte que ele havia comprado de um colecionador. O restaurador contratado era o artista Plástico Cícero Dias, que anos depois aconselharia seu pai a enviá-lo a Paris.

Jardim da Oficina Brennand - Foto de Gustavo Moura - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAEm pouco tempo, os dois tornaram-se amigos e Francisco ‘gazeava’ aula para vê-lo pintar. Por causa dessa convivência, tornou-se amigo de outros artistas mais velhos, como Mário Nunes, Baltazar da Câmara, Murillo La Greca, todos fundadores da Escola de Belas Artes do Recife, e pintava com eles nas tardes de domingo depois de almoçarem todos juntos na casa da família Brennand.

Quando decidiu construir sua oficina a partir das ruínas da fábrica, Brennand não tinha recursos e não recebeu apoio financeiro da família, mas pôde contar com duas heranças que o pai lhe repassara ainda em vida: a paixão pela arte e as ruínas da olaria. A partir dessa base, e do desejo de povoar o local com suas obras, conseguiu custear a oficina artística a com a produção de ladrilhos industriais que logo fizeram sucesso entre os arquitetos e possibilitaram a construção desse impressionante museu.

Em busca do eixo do mundo

Totens com relevos em forma de ovo - Foto de Gustavo Moura-BLOG LUGARES DE MEMÓRIANos últimos anos de vida, Francisco já não fazia mais esculturas. Como nos primeiros tempos, dedicava-se apenas a pintar e a escrever. Em 2016, lançou o Diário de Francisco Brennand, organizado em quatro volumes pela sobrinha neta Mariana, que ficou entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti 2017 na categoria Biografias.

Mesmo com a redução da atividade artística, Brennand seguiu mudando constantemente a sua oficina e dizia que continuava, mais do que nunca, a se sentir influenciável e receptivo, aberto a transmutações.

Embora tenha morado dez anos na Europa e feito mais de 90 exposições pelo mundo afora, elegeu a Várzea como o centro do mundo. Foi aí, no seu ‘bosque sagrado’, que ele continuou vivendo e produzindo como sempre, “no fio da navalha, na corda bamba, tentando coincidir com o eixo do mundo” porque, segundo acreditava, “é aí que o artista encontra a verdade”. Brennad faleceu aos 92 anos, em dezembro de 2019.1

Notas

Para saber mais

  • Conheça um pouco da cidade onde está localizado o Museu Brennand no texto O que fazer em Recife, do Blog Roteiros para Viajantes

Esculturas de Francisco Brennand - Fotos de Gustavo Moura - BLOG LUGARES DE MEMORIA
Esculturas de Francisco Brennand - Fotos de Gustavo Moura - BLOG LUGARES DE MEMORIA

Oficina Brennand – Várzea – Recife – Pernambuco – Brasil – América do Sul

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23 Comentários
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Unknown
5 anos atrás

Amei. Não tive oportunidade de conhecer ainda. Agora com seu relato aguçou a minha curiosidade

Maria Consuelo
5 anos atrás

Lindo demais!

Neilton Santana
Neilton Santana
5 anos atrás

Como sempre você consegue transmitir de forma clara e consistente a história dos lugares visitados. Já estive lá anos atrás, bom relembrar desse lugar mágico.

Elizete Cordeiro de Miranda
5 anos atrás

Que história maravilhosa! Que lugar maravilhoso! Quero conhecer …

Unknown
5 anos atrás

Tive a honra de não apenas conhecer esse lugar maravilhoso, como também participar da gravação do DVD acústica da banda O Rappa. Momentos eternizados no meu coração e na minha memória

sonia pedrosa cury
5 anos atrás

O espaço Brennand é, realmente instigante! Belo registro, Sylvinha!

Unknown
5 anos atrás

Muito, muito legal! Eu não conhecia o Brennand e seu trabalho situado nesse local! Uma aventura de descobrimento, principalmente para alguém que, como eu, é um eterno estudante da Psicanálise e dos simbolismos!

Maria Helena
5 anos atrás

Oi prima demorei mas estou aqui e encantada com todos os detalhes desse local tão precioso. Estive em Recife algumas vezes a trabalho na minha juventude e não conheci. Curto muito a sua maneira de escrever e ainda nos dá a oportunidade de ler sobre as pessoas que você menciona. Muito bom. Sou sua admiradora nesse seu novo trabalho. Parabéns.

Celia Regina Moraes Leme
5 anos atrás

Agora fiquei com vontade de conhecer. Você me aguçou Sylvia. Beijos

Unknown
5 anos atrás

Conhecia o trabalho de forma mais específica pela diversidade e beleza das cerâmicas e não pelas obras de arte criadas por ele . Nunca tive oportunidade de ir na oficina e ver essa criação . Com certeza após essa postagem estará no meu roteiro !!! Bjs

Unknown
5 anos atrás

Já fui e é um dos lugares mais mágicos que já visitei.
Nada se compara a esse templo de arte cerâmica e divindades.
Pretendo voltar para rever essa maravilha.

Fabíola Moura
3 anos atrás

Não importa quantas vezes você for à oficina de Brennand, sempre vai sair impactado. Eu penso que nem é uma questão de gostar ou não das obras, já que é tudo tão diferente e surreal que chega a hipnotizar. Um legado para a arte brasileira.