Canudos: memória de um sonho que o açude não afogou

Tempo de Leitura: 4 minutos

Atualizado em 11/03/2023 por Sylvia Leite

Blog lugares de memória - Matéria Canudos - foto Sylvia LeiteO povoado de Belo Monte, ou Arraial de Canudos, na Bahia, foi destruído há mais de um século e suas terras estão debaixo d’água há quase 60 anos, mas a violência da guerra e o sonho de liberdade de Antônio Conselheiro ficaram impregnados na paisagem da região.

No local onde ocorreram os combates, um museu a céu aberto expõe os contrastes que definiram o começo, o meio e o fim da curta história do povoado. A transparência dos painéis nos faz suplantar a objetividade das cenas e enxergar, através delas, a aridez do terreno e a crueza dos fatos.

Sobre o chão de terra vermelha, ainda é possível encontrar, tanto tempo depois, um ou outro vestígio das balas usadas no massacre.

Antônio Conselheiro: a alma de Canudos

Blog lugares de memória - Matéria Canudos - foto Sylvia LeiteA história Canudos se confunde com a de seu líder e ambas estão envoltas em muitas histórias, verdadeiras ou nem tanto. O cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro, virou lenda no Nordeste e circulava sobre ele todo tipo de boato.

Era tido por muitos como fanático, messiânico e subversivo por acreditar que a República profanava a Igreja Católica e era a materialização do reino do Anti-Cristo na terra. Chegou a ser preso e torturado, acusado injustamente de matar a ex-mulher, mas conseguiu provar sua Blog lugares de memória - Matéria Canudos - foto Sylvia Leiteinocência.

Já para os sertanejos que enfrentavam seca, fome, trabalho extenuante e cobrança de impostos pela força, ele representava a salvação a única esperança de uma vida menos injusta.

Conselheiro era filho de um pequeno proprietário de terras e foi criado em convívio com a Igreja Católica, por isso conseguiu ser alfabetizado e falava Latim. Trabalhou como professor, comerciante e escrivão, mas sua incursão pelo Brasil oficial termina aí. Ainda jovem saiu em peregrinação, assumindo um comportamento que desafiava simultaneamente a Igreja Católica e o Governo Republicano.

Na vida religiosa, ignorou a hierarquia e as formalidades, passando a agir por conta própria. Enquanto os sacerdotes da época rezavam missa em Latim e de costas para os fiéis, Conselheiro misturava-se ao povo, pregando em Português, com linguagem popular e se fazendo entender por todos. Seus seguidores eram lavradores, ex-escravos, ex-prostitutas e povos indígenas.

Blog lugares de memória - Matéria Canudos - foto Sylvia LeiteAntes de fundar a cidadela de Belo Monte, ele peregrinou quase vinte anos pelo sertão nordestino, construindo igrejas, cavando açudes e oferecendo àquela gente sofrida a possibilidade de viver livre em algum pedaço de terra.

Belo Monte

Ao chegar à região de Canudos, em 1893, se estabeleceu com seu povo à margem do Vaza-Barris e formou uma comunidade que chegou a reunir 5 mil e 200 casebres e aproximadamente 25 mil moradores e o sonho tornou-se realidade pelo curto período de três anos.

Blog lugares de memória - Matéria Canudos - foto Sylvia LeiteA mobilização de Conselheiro ameaçou os dogmas e esvaziou as fazendas, provocando a fúria dos dois setores, que junto à imprensa passaram a exigir do governo uma tomada de posição. Para alcançar esse objetivo, teriam difundido a informação, nunca confirmada, de que os moradores de Canudos estariam se preparando para atacar cidades vizinhas e o próprio governo federal, com o fim de re-estabelecer a monarquia.

Uma desavença entre Conselheiro e um comerciante da região teria precipitado o primeiro ataque do governo, que esperava vencer facilmente. Estava enganado. Seriam necessárias quatro expedições militares, ao longo de um ano, para que o Arraial de Canudos fosse finalmente exterminado e seus moradores friamente massacrados.

Depois da destruição, em 1897, a vila foi lentamente reconstruída. Na década de 1960, o Governo Federal mandou represar o Vaza-Barris e Canudos submergiu sob o Açude de Cocorobó. A poucos quilômetros dali foi erguida outra cidade, que não guarda qualquer semelhança com a Canudos original, mas abriga o Memorial Antônio Conselheiro, que possui informaçõesPortal de entrada do Parque Estadual de Canudos - Foto de Sylvia Leite -BLOG LUGARES DE MEMORIA complementares às do museu a céu aberto, batizado como Parque Estadual de Canudos.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do tempo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíam seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados. (Euclides da Cunha) 1 e 2

Notas

Canudos – Euclides da Cunha – Raso da Catarina – Bahia – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • Sylvia Leite
Compartilhe »
Increva-se
Notificar quando
guest
34 Comentários
Avaliações misturadas ao texto
Ver todos os comentários
Unknown
5 anos atrás

Muito bom, Sylvinha!!! Continue resgatando e recontando essas histórias, revolvendo as nossas raízes!

Marcelo
5 anos atrás

Fantástico, simplesmente fantástico, relembrei quando passei por lá indo para Cocorobo.

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Silvinha que maravilha podermos conhecer essas histórias através dos seus olhos. Todas as vezes que leio seus textos tenho vontade de ir ao local. Mais uma vez você está de parabéns. Aida Carrera

Nairson Socorro
5 anos atrás

Parabéns pelo Texto Sylvia! Seu texto oportuniza uma reflexão sobre a força do estado contra os movimentos sociais. Nem mesmo o represamento da água na tentativa de apagar os vestígios da história e do massacre que viveu Canudos, foi suficiente para apagar com essa triste página de nossa história. Isso faz nos voltar ao que estamos vivendo hoje, com a perseguição a Lula, a Dilma e aos partidos comprometidos com as forças populares! O que os DONOS DO PODER no futuro vão tentar fazer para apagar essa outra página negra de nossa história?

Mercedes Silva
5 anos atrás

Fico tão contente qdo (ainda) sou surpreendida logo cedo por estes textos ! Bjos

Liliana Díaz Silva
5 anos atrás

Realmente muy interesante! No conocía esa historia tan rica y triste más aún genera la esperanza en nuestros pueblos. Gracias!!! Abrazo desde Uruguay

Neilton Santana
Neilton Santana
5 anos atrás

Como sempre um texto claro e oportuno resgatando um pedaço da nossa história. Mais uma vez parabéns

Unknown
5 anos atrás

Belo texto, Sylvia, conciso e informativo. E ainda teve o bom gosto de citar um grande mestre do nosso idioma, Euclydes da Cunha.
Carlos.

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Parabéns, Sylvia, pelo texto! Obrigada! Quero muito ir lá.

Elizete Cordeiro de Miranda
5 anos atrás

Sensacional, Sylvia! Foi uma lembrança da nossa história. Com um texto muito claro, fica mais fácil de visualizar as cenas históricas

Virginia Finzetto
5 anos atrás

Belíssimo texto, Sylvia. Seu blog está maravilhoso.

Unknown
5 anos atrás

Preciso conhecer Canudos, memorial da resistência à exploração do homem pelo homem.
Bela descrição para tempos difíceis como estamos atravessando.

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Parabéns Sylvinha!!! Estou aguardando ansiosa pelos próximos textos.
Marta Carrera

Anonimo
5 anos atrás

Este lugar eu ja fui e gostei imensamente. Ja havia lido A Guerra do Fim do Mundo e reli para rememorar.Comprei os sertoes para ler de quem esteve la. Mas Canudos tem mais história. Para os observadores de aves temos a linda e epica história das "Araras Azuis de Lear" que somente sao encontradas la e num resgate da vida foram salvas da extincao. Augusta Leite.

Eliana Gonçalves
Eliana Gonçalves
5 anos atrás

Uma parte da história brasileira! Gratidão

Unknown
5 anos atrás

Li os Sertões de Euclides da Cunha e ao visitar o Raso da Catarina muitas passagens dos 'Sertões' me vinham como um filme na cabeça. Obrigada por sua postagem, pois ao ler, revivi aquele momento. Bjs

normeide neto de carvalho
normeide neto de carvalho
3 anos atrás

Adoro ler o seu blog. Aqui sinto que adquiro mais conhecimento O post sobre Canudos, memoria de um sonho, por exemplo, está incrível. Obrigada por isso.